Em princípio poderíamos pensar que mudando o
governo se passaria a falar menos do estado do SNS e as notícias alarmistas
sobre o encerramento dos serviços de urgência de obstetrícia e de pediatria
desapareceriam ou seriam mais discretas, embora saibamos à priori que a
política do PSD pouco ou nada difere da do PS quanto à questão da saúde em
Portugal. Mas não foi isso que aconteceu, o alarmismo, o denegrir constante do
SNS por parte da comunicação social mainstream e o adiar da resolução dos
problemas das carreiras dos profissionais de saúde continuarem, se não
aumentaram de intensidade e de frequência. O propósito é claro: desqualificar e
desacreditar o serviço público de saúde para facilitar a promoção do sector
privado do negócio, não da saúde, mas da doença.
Os salvíficos ‘Plano de Emergência’ e
‘Plano de Verão’
O governo entrou, aparentemente a todo o
vapor, com grande protagonismo da ministra, especialista em medicamentos, mas
pouco conhecedora do que são e para que servem outros paradigmas de saúde para
além do modelo curativo centrado no receituário de moléculas químicas. Entrou
com um putativo Plano de Emergência da Saúde, depois de o demissionário
director executivo do SNS ter dado o nega, e perante as críticas das diversas
organizações profissionais e dos partidos da oposição quanto à vacuidade das
medidas propostas, a ministra de imediato mostrou o mau caracter e a
ignorância, não deixando de afirmar que a responsabilidade pelo Plano de Verão
"é dos administradores hospitalares". E após a resposta adequada por
parte daqueles últimos, veio redobrar a acusação de que as direcções
hospitalares seriam “fracas”. Apercebendo-se da argolada, ou alguém a terá
alertado para o perigo da escalada do confronto, e mostrando que a coragem
política não é o seu forte, veio esclarecer que não era bem isso que queria
dizer.
O chefe do principal partido da oposição
verberou que, no governo PSD/CDS e em particular na ministra, “não há nenhuma
visão para o SNS”. O que não é verdade, existe uma visão clara, ou obscura,
conforme o ponto de vista, sobre o SNS, que é a sua rápida e eficiente
liquidação. E as medidas para este Verão toda a gente ficou a conhecer: os mapas
com urgências e blocos de parto abertos nas várias regiões do país serão
publicados, mas os interessados devem ligar primeiro para a linha do SNS 24
para grávidas. Ou seja, mais do mesmo do governo PS. O que depressa se
verificou com o record de encerramentos de serviços de urgência de obstetrícia
e pediatria e blocos de partos neste último fim de semana: “Doze urgências
fechadas no domingo; outras nove urgências estarão parcialmente abertas ou
apenas reservadas aos doentes”. Nesta parte a ministra ultrapassou, mas pela
direita, o seu antecessor, o famigerado e conhecido “cabeça de tartaruga”, que
agora anda a promover a literatura woke sobre confusão de géneros.
Adiar as negociações com os sindicatos para
nada resolver
Em relação à questão das carreiras dos
profissionais do SNS a ministra não poderia ter sido mais clara quanto às suas
reais intenções: “Ministério adiou reuniões da próxima semana com sindicatos
médicos”. Os representantes dos médicos já perceberam, se não, então, devem
rever a posição para não terem alguma desilusão, que este governo possui a
mesma boa-fé que o anterior, que é nenhuma. A estratégia vai ser, como sempre
foi, empurrar os problemas com a barriga, fazendo promessas vagas e adiantando
propostas ínfimas e até provocadoras e simultaneamente criando o desalento e a
divisão no seio dos médicos. É a estratégia do desgaste, entretanto, o tempo
passa e a privatização da saúde será facto consumado. Esperamos que os médicos
se insurjam contra esta política e que se ponham em luta dentro em breve, mas
que saibam concitar o apoio de outras categoria profissionais e,
fundamentalmente, o apoio dos cidadãos utentes do SNS.
Os médicos ainda são os que mais se queixam da
sua situação, embora e repetimo-lo, nem todos poderão queixar-se na medida em
que a classe é algo heterogénea. Os sindicatos acusam os hospitais de travarem
adesão à dedicação plena, as administrações obedecem às directivas do governo,
travar a dedicação exclusiva e permitir que todos os outros médicos possam,
acumulando com o público, fazer concorrência desleal com o patrão estado. É
assim desde as reformas das carreiras médicas de 2012, acabar com a dedicação
exclusiva (agora, diz-se “plena”) e mandar os restantes para o privado onde
trabalham na sua grande maioria como empresários, alguns deles, saindo do SNS,
vendem-lhe depois os seus serviços. E é para aqui, para o privado que vai quase
40% do Orçamento destinado à Saúde.
Esta situação irá agravar-se com o grande
número de médicos a atingir a idade da reforma, 45% dos médicos de família têm
mais de 65 anos, mas o governo já encontrou uma fórmula milagrosa, vai
contratar médicos reformados que podem juntar o vencimento à reforma. Mas
contratar mais médicos novos, atraindo-os com melhores vencimentos, progressões
e condições de trabalho, não é caminho a seguir, bem pelo contrário,
sobrecarregar os que ainda ficam nos cuidados primário com mais trabalho, menos
incentivos, estes serão apenas de natureza economicista, ou seja, degradação da
qualidade dos cuidados médicos e outros. Para tapar o sol com a peneira, o
governo veio, seguindo o mantra do anterior, prometer abertura de mais vagas,
apesar da Ordem dos Médicos lembrar que 26% das vagas lançadas para
especialistas ainda ficam por ocupar.
Quanto aos enfermeiros estes continuam a ser
endrominados com o aparente prazer das direcções sindicais, da dos sindicatos
afectos ao PSD e PS nada de estranhar, ora, quanto aos restantes, fica-nos a
sensação de que o espírito de colaboração de continuarem a beber o chá das
cinco com a ministra continua a ser a prioridade. Em relação a outras
categorias profissionais importantes, sem as quais o SNS, ou outros serviços
públicos, não conseguem funcionar, assistentes operacionais ou técnicos
administrativos, laboratórios, imagiologia, etc., não se vislumbra sinal de
vida. Os administradores hospitalares prevêem dificuldades nos hospitais neste
Verão por manifesta falta de profissionais, no entanto, o governo vai
despedindo enfermeiros que acabam o contrato de trabalho, como aconteceu com
mais de vinte enfermeiros da ULS de Coimbra. O descontentamento também vai
alastrando, os enfermeiros de centros de saúde da região de Lisboa em greve a 4
de julho.
Liquidar o SNS dizendo o contrário
A degradação do SNS é voluntária, é
intencional, é dolosa, obedece a um plano e beneficia lóbis e interesses que já
não se dão ao trabalho de disfarçar. São as queixas, por exemplo, na Ordem dos
Médicos, que chegaram às 2027 só no ano de 2023; ou os enfermeiros que rejeitam
abdicar de equiparação com carreira técnica superior, porque sentem que vão ser
menorizados nas suas funções, autonomia e salários. Resultado: foram registados
mais 36 mil utentes sem médico de família nos dois últimos meses; o Hospital de
Penafiel colocou 80 doentes em isolamento contaminados por bactéria, fruto da
deterioração das condições de trabalho e falta de investimento em material e
equipamento. Situação semelhante no SNS24, considerada “situação explosiva”, ou
no INEM. Por se sentirem prejudicados e sem condições de trabalho adequadas, mais
de metade dos médicos ortopedistas do hospital de Évora demitiu-se, e a administração
do hospital de Viseu seguiu o mesmo caminho, alegando "quebra de confiança
política" da ministra. E poderíamos continuar.
As medidas que o governo já anunciou para
salvar o SNS são medidas, para já as conhecidas, para o liquidar apesar de
apresentadas como salvadoras do SNS e da saúde dos cidadãos. O governo diz que vai
lançar até final do ano concurso público para a criação de 20 Unidades de Saúde
Familiar, mas geridas pelos setores social e privado em regiões com falta de
médicos de família. Pergunta-se onde vai o governo buscar os médicos, e outros
profissionais, se 80% dos médicos que trabalham no privado acumulam com o público,
embora muitos deles, especialmente directores e chefes de serviço, vão lá de
vez em quando para colocar o dedo no biométrico? Diz que vai atribuir incentivos
adicionais a hospitais públicos para cirurgias oncológicas, tendo a ministra
enganado nos números de cirurgias em espera, em vez das 2.500 falou em 9 mil,
dando bem a ideia da informação que possui, ou então gosta de ser alarmista,
empolando os problemas de molde a responsabilizar os médicos, que são uns
calões.
O que a ministra e o governo propõem como
solução para o SNS é colocar o sector privado a substituir-se ao público,
pagando-lhe principescamente, ou seja, financiar os privados, incluindo a
Igreja Católica com as misericórdias e outras IPSS, para fazer o que o SNS vai
deixar de fazer por intenção deliberada do governo. Para aliviar urgências, o governo
diz que vai criar centros de atendimento abertos também a privados, claro que
vão receber por isso, e os vales-cirurgia vão ser substituídos por
“vouchers telefónicos”. Pretende também retirar 50 mil emigrantes das listas
dos médicos de família, e enviá-los possivelmente para os privados, o problema
é que estes não têm dinheiro para pagar, ficará o governo com novo encargo de
financiamento. Parece que para enfiar nos bolsos dos negociantes da doença há
dinheiro que nunca mais acaba, faltará, no entanto, para melhorar as grelhas
salariais e as carreiras de médicos, enfermeiros, auxiliares e por aí fora.
Para salários não há dinheiro, compreende-se, será para o público não fazer
concorrências ao privado e obrigar de certa forma os profissionais de saúde a
acumular vários empregos para melhorar o rendimento mensal.
A saúde é um negócio e os cidadãos pagam ou
são abandonados
Os negócios com a saúde são muitos e nunca
acabam. O Hospital da Misericórdia do Porto vai receber até 365 doentes não
urgentes do SNS diariamente por 45 euros cada, no entanto, o Hospital Militar
vai ser destinado a receber refugiados. As vacinas foram entregues às farmácias
sem se ter passado informação aos centros de saúde, estes foram os últimos a
saber e a receber os lotes de vacinas. Ficaram às moscas porque as vacinas
passaram a ser administradas nas farmácias privadas. Ainda há pouco veio um
estudo manhoso querer demonstrar que o negócio terá sido vantajoso para os
cidadãos, porque lhes terá poupado 2,4 milhões de euros, só que “esqueceu-se”
de referir que o governo gastou com o negócio 11,5 milhões de euros (2,5 euros
por vacina covid ou da gripe), dinheiro que daria para contratar 639
enfermeiros que faltam no SNS. Primeiro o negócio, depois, ou jamais, os
profissionais que fazem funcionar o SNS. Não é por acaso que a maioria dos
médicos e enfermeiros, e não só, os que zelam pelo SNS, se sentem exaustos e
desmotivados, com o aumento de queixas contra os serviços públicos, mas que se
dirigem muitas vezes contra estes profissionais pela simples razão de que são
eles que dão a cara pelo SNS. Enquanto os governantes e responsáveis políticos
se escondem nos gabinetes e na mentira mediática.
A situação ao longo deste Verão vai ser
caótica. As urgências continuarão a encerrar, abrangendo um número maior de
hospitais; as escalas dos médicos das urgências continuarão a falhar, a maior
prova de incúria e de incompetência foi a necessidade de o governo ter de
republicar as escalas de urgência porque… o PDF estava errado; os utentes continuarão
a queixar-se da qualidade dos serviços e tempos de espera no SNS que irão
piorar; os sindicatos dos médicos continuarão a dizer que se “adivinha Verão
caótico”, coisa fácil de prever; os negócios, e a corrupção, continuarão,
olhe-se para o caso da consultora IQVIA (empresa privada) que terá participado na
conceção do “plano de emergência da saúde”, mas que já tinha feito 55 contratos
com o estado no tempo do governo PS, mas que a ex-ministra, agora com tacho bem
cheio no Parlamento Europeu, diz desconhecer. Foi exactamente esta
ex-comissária política para a Saúde que defendeu, durante a campanha eleitoral,
uma "União Europeia da Saúde”, ou seja, um sistema europeu de negócio para
os bancos e companhias de seguros e onde os dados dos utentes de cada país
possam estar disponíveis. O Big Health Business agradece. Por outras
palavras, eis o resultado de muitos cidadãos neste país insistirem no voto nos
dois principais partidos do establishment, agora as queixas de pouco valerão.
Imagem encontrada do Facebook
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