sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

2024: SNS em saldo para liquidação total

  

Temos assistido no último ano ao desmantelamento do SNS em velocidade mais acelerada, ao contrário do que os governos nos habituaram. Estes têm usado uma táctica que varia consoante se é o PSD ou o PS que governa, embora a estratégia tenha sido sempre a mesma. O primeiro é a política do depressa e à bruta seja na privatização dos serviços públicos seja na restrição dos direitos dos trabalhadores qualquer que seja a área económica, sector público ou privado. A explicação poderá estará na enorme pressão exercida pelos diferentes lóbis que dominam e proliferam no mercado da saúde e/ou nas directivas impostas por Bruxelas de alastrar a gestão capitalista a todas as áreas da vida social.

A campanha mediática no sentido da destruição do SNS

Assiste-se à campanha desenfreada pelos media mainstream no sentido de denegrir o mais que possível o SNS, começou há dois anos pelo Verão, quanto às urgências de obstetrícia e ginecologia dos hospitais públicos, prolongando-se por todo o ano transacto, estendeu-se ainda antes do início do Inverno a todas as urgências em geral. Todos os dias as televisões, com especial destaque para a RTP pública que é financiada com os nossos impostos, dão a informação em tempo real do tempo médio de espera nas urgências dos hospitais do SNS, com o intuito claro de desacreditar o SNS e induzir as pessoas e recorrer aos hospitais privados, mas parece que a tarefa não está a ter os resultados esperados.

A campanha mostra-se desesperada e até pungente, pintando o cenário com as tintas mais negras: «"Medicina de guerra": hospital de Penafiel com dezenas de internados nas urgências JN”»; «Urgências com até 18 horas de espera: Ordem dos Médicos alerta para consequências “nas próximas semanas e meses”». Como seria de esperar a Ordem dos Médicos, um dos lóbis mais fortes para a privatização total da saúde, encontra-se constantemente na linha da frente. E o alarmismo soma e segue: «SNS tem 83 serviços de urgência. Na próxima semana apenas 44 estarão a funcionar em pleno».

Com o aumento, sazonal e já esperado, dos casos de gripe, especialmente em pessoas mais idosas ou crianças, os mais vulneráveis, o histerismo atinge o clímax: «“Estão a morrer todos os dias 470 pessoas no país. Médicos alertam para força do vírus gripal deste ano e para a fraca adesão às vacinas»; «Na última semana foram registadas mais 775 mortes do que o previsto. A Direção-Geral da Saúde reconhece que os números estão acima do esperado.» Aproveita-se também a ocasião para se continuar a fazer propaganda ao negócio das vacinas, paradoxalmente, no país que mais vacinou a população em toda a União Europeia.

Enfatiza-se o pretenso “caos” das urgências, como este problema fosse só de agora, ainda nos lembramos quando, na década de oitenta do século passado, os doentes eram colocados no chão ou nos parapeitos das janelas nas urgências dos antigos Hospitais da Universidade Coimbra: «Mais de 21 mil pessoas procuraram as urgências no dia 26. Foi o recorde do ano»; «Gripe A enche Cuidados Intensivos. Maioria dos doentes internados não estava vacinada (fica a dúvida, fazendo fé na informação da DGS sobre a taxa de vacinação, mais de 2 milhões de vacinados na primeira semana do ano)».

E os media corporativos, alguns falidos porque o cidadão não está para gastar dinheiro em propaganda, colocam a questão: «O que explica o excesso de mortalidade nas últimas semanas em Portugal?». Poderemos acrescentar algumas causas: má alimentação, deficiente higiene, pobreza energética, resultantes dos salários e pensões de reforma miseráveis, o encerramento parcial dos cuidados primários para justificar a sua privatização… ou o excesso de vacinas contra acovid-19 que degradaram o sistema imunológico das pessoas. As causas são múltiplas e entroncam nas políticas de degradação da vida dos portugueses e dos serviços públicos conduzidas pelo governo do PS.

A privatização dos cuidados primários é bem patente, parece que é feita obedecendo a plano há muito tempo delineado, não é fruto do acaso ou de acontecimentos fortuitos e inesperados. É bem intencional porque enquanto o número de utentes sem médico de família aumentou 9,8% em 2023, passando de 1.570.018 em janeiro para 1.724.859, as seguradoras carregam nos preços dos seguros de saúde e responsabilizam SNS e inflação pelo encarecimento e os médicos de saúde pública vêm na sua maioria recusar o regime de “dedicação plena” justificando que irão ficar em desvantagem em relação aos outros colegas. Mada acontece por acaso em política.

Fica bem aos órgãos de comunicação social, pertencentes a grandes grupos económicos, alguns deles com interesses no sector da saúde, exemplo grupo Sonae, carregar nas cores da desgraça do SNS: «O ano de 2023 pode ter sido um dos piores do SNS. E quem nele trabalha também não vislumbra "luz ao fundo túnel" para 2024». E as urgências como já referimos são o eterno cepo das marradas: «Urgência de obstetrícia no Santa Maria sem médicos vários dias. A administração do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, terá entregado o mapa de Dezembro com vários dias sem médicos». É perfeitamente compreensível que os médicos, como quaisquer outros profissionais da saúde ou cidadão mortal, não possuem o dom da ubiquidade, se estão no privado, não podem estar no público ao mesmo tempo.

O papel da Ordem dos Médicos na substituição do SNS pelo empresariado privado

Foi igualmente manchete o «SNS celebra 44 anos com a “grande reforma” das ULS», ou seja, a reforma conduzida Direcção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) tem esse objectivo bem definido: privatizar a saúde, ficando o SNS como prestador de cuidados mínimos, em termos de assistencialismo, ao mesmo tempo que funcionará como instrumento para financiar o sector privado através de diversos meios, um dos mais importantes e já funcionar m pleno é a compra dos cuidados prestados pelos diferentes empresários, alguns dos quais ex-funcionários do próprio SNS que foram para o privado não como assalariados mas como empresários (“O negócio milionário da saúde privada”, Sábado, 26.10.2023).

É nesta qualidade de empresário que muitos médicos têm abandonado o SNS para depois vender ao estado por preço a dobrar ou a triplicar o que não faziam enquanto seus empregados. Este fenómeno já acontecera em outras empresas que foram privatizadas, o melhor exemplo é o da EDP que fechou serviços e mandou embora engenheiros que depois passaram a prestar esses mesmos serviços mas na qualidade de empresários. Aqui nada de novo, é a entrada em força do capitalismo, com as suas regras e modos de gestão, liquidando tudo o que possas cheirar a gestão ou propriedade pública que possa beneficiar o cidadão utente. O leitmotiv é sempre o lucro.

Esta política de degradação e de empresarialização da saúde começou nos idos da década de 80 do século passado com a lei de gestão hospitalar (1988) de Cavaco Silva, mas que tem vindo a crescer gradualmente ao longo deste tempo, acentuando-se, contudo, nestes oito anos de governo dito “socialista”. Transformação esta conduzida pela Ordem dos Médicos e protagonizada pelos seus sucessivos bastonários que, trabalhando simultaneamente no público e no privado, tornaram o SNS refém dos seus interesses corporativos e partidários.

A entrada em listas do PSD para as próximas eleições legislativas do anterior bastonário tira as dúvidas a quem eventualmente as tivesse e, por outro lado, prova que os problemas da classe profissional dos médicos do SNS têm sido utilizados na luta partidária contra os governos do PS e para reforço dos privilégios de directores e chefes de serviço e restantes médicos seniores em detrimento dos médicos internos que agora iniciam a carreira. Foram estes ditos “tubarões da medicina”, com a colaboração activa das administrações hospitalares, que criaram as longas listas de espera para cirurgias, consultas ou exames complementares de diagnóstico.

Os governos PS e PSD paulatinamente transformaram a saúde em negócio lucrativo para os privados, seguindo as inúmeras e insistentes directivas dimanadas por Bruxelas, cada um competiu com o outro, conhecem-se médicos quer de um quer de outro partido que acumulam o público com o privado, traficando doentes de um lado para o outro. Alguns exemplos: director de serviço do PS que acumula o hospital público com a direcção da faculdade e com consultas em hospital privado e ainda é sócio de clínica privada na cidade de Coimbra; outra figura importante, tendo pertencido ou ainda pertence à direcção nacional do PS, foi nomeado para director de serviço, apesar de não ter curriculum para tal porque nem doutorado era, com a condição, que foi aceite, de não abdicar do consultório que possuía e ainda possui depois de reformado nas proximidades do hospital. Na privatização, os dois partidos são simplesmente as duas faces da mesma moeda.

A luta dos médicos e nem todos os médicos são iguais

Percebe-se bem que os médicos não se podem enfiar todos no mesmo saco, ao lado dos caciques e tubarões da medicina com nome estabelecido na praça, há os internos, geral e especialidade, que estão ainda a aprender, que não podem reivindicar, porque os exames são fatais e nessa condição deixam-se explorar pelos chefes que lhes atiram para cima o trabalho que a eles compete enquanto vão para o privado ou tratar de assuntos pessoais. Conhecemos inúmeros casos destes e em diversos serviços hospitalares: alguns vão ao hospital de motoreta ou de bicicleta para fintar o trânsito, colocam o dedo no biométrico e vão tratar da vidinha, e os directores de serviço até gozam de “horário flexível”, protegendo-se uns aos outros. É um gozo e um fartar!

A greve às horas extraordinárias por parte dos médicos, quando 90% deles acumulam com privado, a começar pela médica que assumiu a direcção da luta desde o início, os “médicos em luta”, que parece trabalhar em mais dois hospitais privados, CUF e LAPA, invocam a exaustão, o que não deixa de possuir algum fundamento de verdade já que se trata de uma das consequências da tal gestão capitalista da saúde, mas também encerra muito de oportunismo. Porque, e sublinhamos, a luta está a ser conduzida não pelos “escravos” que estão a completar a sua formação, os internos, os que realmente sofrem de stress laboral, mas pela elite que faz da medicina um modo de enriquecimento.

O problema não se resolve, como pensam alguns partidos da oposição, em dar apenas melhores condições e melhores salários aos trabalhadores do SNS, há que separar de vez e de forma clara o público do privado. Se um jornalista ou um trabalhador do sector automóvel, por exemplo, não tem o direito de trabalhar ao mesmo tempo em empresa concorrente ou ele próprio fazer a concorrência através de carocas, pela simples razão que será motivo de justa causa para despedimento, então por que razão os médicos, e não só, podem usufruir desse privilégio? A explicação é simples: a Ordem dos Médicos e o Governo estão conluiados na destruição do SNS.

O Estado/Governo demite-se da sua função social

Não é novidade para ninguém que o Governo, ou seja, o Estado, há muito se demitiu do seu papel de prestador de serviços de carácter social e, especialmente, serviços de qualidade, é assim na educação, na segurança social, e é na saúde, que consiste no bem mais essencial e estimado pelo indivíduo.

Os velhos estão à sua sorte, mais de metade dos lares são ilegais e mesmos os legais muitos deles não possuem as mínimas condições de humanização. O Governo/Estado demitiu-se, entregou a missão aos privados e principalmente à Igreja que constantemente reivindica mais dinheiro como acabou de acontecer, indo Costa a correr e satisfazer a vontade clerical com o reforço de financiamento. Percebe-se, vai haver brevemente eleições e é preciso ter as boas graças da Igreja Católica e os votos dos seus paroquianos.

Não há jardins de infância em número suficiente, qual a solução? O Estado/Governo autoriza o aumento do número de vagas dos jardins infantis a começar pelos privados a quem dá dinheiro para aceitar crianças de famílias mais carenciadas em termos de gratuitidade. Do mesmo modo, não há uma rede pública de cuidados continuados, então vai-se dar dinheiro aos privados para resolver a solução. A mesma mezinha se utiliza para resolver a falta de residências para estudantes ou para criar um mercado de habitação para arrendamento a preços acessíveis: dá-se dinheiro aos privados.

E a mesma receita desde algum tempo, não é de agora, mas que se fomentou exponencialmente a partir da pandemia da covid-19 (bendita e santa pandemia!) para se resolver os problemas dos congestionamentos das urgências ou falta de camas no SNS. Vem a administração dos CHUC anunciar o reforço de 25 camas nas Urgências, poderia também e já agora esclarecer quantas camas foram encerradas desde alguns anos para, entretanto, se dar espaço para os hospitais privados, que floresceram como cogumelos e, ainda por cima, nas suas proximidades e usando siglas muito semelhantes aos do hospital público.

O Estado/Governo tem feito tudo e mais alguma coisa para transformar a saúde num negócio como qualquer outro, com o SNS a funcionar como vulgar empresa privada capitalista, desde a mudança de estatuto dos hospitais (empresarialização), substituição de funcionários com contrato a tempo indeterminado por funcionários em contrato individual e, para cumulo da escravidão, contratação de trabalhadores, incluindo médicos, a empresas de trabalho temporário, algumas das quais com sócios que são simultaneamente funcionários do SNS, como aconteceu aqui há alguns anos no Hospital dos Covões, tendo sido, como é obvio, impugnado o concurso que tinha beneficiado uma dessas empresas; o caso veio na imprensa local. É o fartar vilanagem!

Saúde, um negócio como qualquer outro

A CIP veio recentemente reclamar o pagamento das dívidas do SNS aos fornecedores, apontando como necessária a injecção de pelo menos 750 milhões de euros, o Governo PS de pronto e como estamos em vésperas de eleições satisfez a reivindicação e veio a terreiro gabar-se de que nunca a dívida do SNS foi tão baixa como agora. Devemos relembrar que todo o material, consumíveis, serviços, etc. são vendidos ao estado a um valor muito superior ao seu real valor no mercado já para fazer face aos eventuais atrasos, segundo os vendedores. E muito desse material, nomeadamente medicamentos, poderia ser produzido por empresas públicas e não por privados, o que faria baixar grandemente a despesa na saúde. Convém referir que a corrupção nos hospitais é mais do que farta e muita gente enriquece à custa do SNS. Se as contas fossem bem feitas, chegaríamos facilmente à conclusão que muitos dos fornecedores reclamantes é que teriam de pagar ao Estado.

Se a despesa das famílias em saúde é o dobro da média da Europa, como mostram as estatísticas e papagueiam os media, podem agradecer ao Governo PS&PSD que transformou, ao longo destes 44 anos de vida do SNS, a saúde em fonte de lucro para os inúmeros lóbis, que são empreendedores de “sucesso” à custa dos dinheiros públicos. Mas, ao que parece, a despesa em saúde só existe para algumas famílias e não para todas, convém também falar do caso das gémeas, que são luso-brasileiras, mas não se sabe bem como, que beneficiaram de um tratamento de 4 milhões de euros, comprovadamente ineficaz, pago pelo erário público e graças à intervenção de sua excelência o presidente da república. Estamos em terra em que alguém que não tem padrinho morre moiro; nós, povo português, corremos o risco de morrermos todos moiros Não deixa de ser curioso que as gémeas tiveram primeiro a consulta marcada no privado (Lusíadas) pela médica que acabou por fazer o tratamento no público.

Para falar em medicamentos, são os milhões de euros, melhor, centenas de milhões desperdiçados pelo Governo PS em compra de vacinas que não se administram, e de necessidade duvidosa, de medicamentos sem efeito comprovado, é o Zolgensma que foi usado em mais crianças, é o Remdesivir, que já provou não só a ineficácia contra a coivd-19 como possui efeitos colaterais perigosíssimos, são medicamentos redundantes quando existe no mercado medicamentos mais baratos e eficazes, mas que não são do interesse dos laboratórios farmacêuticos, que chegam ao ponto de se arrogarem a impor aos governos contratos com clausulas secretas, sigilo sobre os preços e, mais recentemente, retirada do preço das embalagens, o que, assim, facilitará a especulação de preços. Alguns, ou talvez muitos, médicos, a troco de muitos milhares de euros, funcionam como intermediários destes negócios multimilionários.

As mafias tomaram decididamente conta do negócio da saúde, e não será com governos constituídos pelos partidos do establishment que se conseguirá salvar o SNS. No sexto fórum das Ordens Profissionais, organizado pela Ageas Seguros, que reuniu diversos “peritos” da saúde escolhidos a dedo, “debateram” os problemas do Sistema Nacional de Saúde no sentido de que este terá de integrar o privado, deixará de ser “Serviço” para ser “Sistema”. O tema não deixou dúvidas: "A importância dos grupos de saúde privados no sistema de saúde", uma realidade considerada “incontornável”. Rui Diniz, presidente da Comissão Executiva CUF que, considerando um universo de cinco milhões de pessoas com seguros de saúde, incluindo a ADSE, não se engasgou: "Os privados estão a prestar serviços todos os dias, a fazer cirurgias e a dar consultas." Mas querem mais, parece que o trabalho de liquidação ainda não chegou ao fim. Será facto consumado e dificilmente se conseguirá arrancar o SNS das garras dos abutres se o povo português continuar a confiar nos partidos do costume.

Imagem de destaque: henricartoon

Sem comentários: