Temos assistido no último ano ao
desmantelamento do SNS em velocidade mais acelerada, ao contrário do que os
governos nos habituaram. Estes têm usado uma táctica que varia consoante se é o
PSD ou o PS que governa, embora a estratégia tenha sido sempre a mesma. O
primeiro é a política do depressa e à bruta seja na privatização dos serviços
públicos seja na restrição dos direitos dos trabalhadores qualquer que seja a
área económica, sector público ou privado. A explicação poderá estará na enorme
pressão exercida pelos diferentes lóbis que dominam e proliferam no mercado da
saúde e/ou nas directivas impostas por Bruxelas de alastrar a gestão
capitalista a todas as áreas da vida social.
A campanha mediática no sentido da
destruição do SNS
Assiste-se à campanha desenfreada pelos media
mainstream no sentido de denegrir o mais que possível o SNS, começou há dois
anos pelo Verão, quanto às urgências de obstetrícia e ginecologia dos hospitais
públicos, prolongando-se por todo o ano transacto, estendeu-se ainda antes do
início do Inverno a todas as urgências em geral. Todos os dias as televisões,
com especial destaque para a RTP pública que é financiada com os nossos
impostos, dão a informação em tempo real do tempo médio de espera nas urgências
dos hospitais do SNS, com o intuito claro de desacreditar o SNS e induzir as
pessoas e recorrer aos hospitais privados, mas parece que a tarefa não está a
ter os resultados esperados.
A campanha mostra-se desesperada e até
pungente, pintando o cenário com as tintas mais negras: «"Medicina de
guerra": hospital de Penafiel com dezenas de internados nas urgências JN”»;
«Urgências com até 18 horas de espera: Ordem dos Médicos alerta para
consequências “nas próximas semanas e meses”». Como seria de esperar a Ordem
dos Médicos, um dos lóbis mais fortes para a privatização total da saúde,
encontra-se constantemente na linha da frente. E o alarmismo soma e segue: «SNS
tem 83 serviços de urgência. Na próxima semana apenas 44 estarão a funcionar em
pleno».
Com o aumento, sazonal e já esperado, dos
casos de gripe, especialmente em pessoas mais idosas ou crianças, os mais
vulneráveis, o histerismo atinge o clímax: «“Estão a morrer todos os dias 470
pessoas no país. Médicos alertam para força do vírus gripal deste ano e para a
fraca adesão às vacinas»; «Na última semana foram registadas mais 775 mortes do
que o previsto. A Direção-Geral da Saúde reconhece que os números estão acima
do esperado.» Aproveita-se também a ocasião para se continuar a fazer
propaganda ao negócio das vacinas, paradoxalmente, no país que mais vacinou a
população em toda a União Europeia.
Enfatiza-se o pretenso “caos” das urgências,
como este problema fosse só de agora, ainda nos lembramos quando, na década de
oitenta do século passado, os doentes eram colocados no chão ou nos parapeitos
das janelas nas urgências dos antigos Hospitais da Universidade Coimbra: «Mais
de 21 mil pessoas procuraram as urgências no dia 26. Foi o recorde do ano»; «Gripe
A enche Cuidados Intensivos. Maioria dos doentes internados não estava vacinada
(fica a dúvida, fazendo fé na informação da DGS sobre a taxa de vacinação, mais de 2 milhões de vacinados na primeira semana do ano)».
E os media corporativos, alguns falidos porque
o cidadão não está para gastar dinheiro em propaganda, colocam a questão: «O
que explica o excesso de mortalidade nas últimas semanas em Portugal?».
Poderemos acrescentar algumas causas: má alimentação, deficiente higiene,
pobreza energética, resultantes dos salários e pensões de reforma miseráveis, o
encerramento parcial dos cuidados primários para justificar a sua privatização…
ou o excesso de vacinas contra acovid-19 que degradaram o sistema imunológico
das pessoas. As causas são múltiplas e entroncam nas políticas de degradação da
vida dos portugueses e dos serviços públicos conduzidas pelo governo do PS.
A privatização dos cuidados primários é bem
patente, parece que é feita obedecendo a plano há muito tempo delineado, não é
fruto do acaso ou de acontecimentos fortuitos e inesperados. É bem intencional
porque enquanto o número de utentes sem médico de família aumentou 9,8% em 2023,
passando de 1.570.018 em janeiro para 1.724.859, as seguradoras carregam nos
preços dos seguros de saúde e responsabilizam SNS e inflação pelo encarecimento
e os médicos de saúde pública vêm na sua maioria recusar o regime de “dedicação
plena” justificando que irão ficar em desvantagem em relação aos outros
colegas. Mada acontece por acaso em política.
Fica bem aos órgãos de comunicação social,
pertencentes a grandes grupos económicos, alguns deles com interesses no sector
da saúde, exemplo grupo Sonae, carregar nas cores da desgraça do SNS: «O ano de
2023 pode ter sido um dos piores do SNS. E quem nele trabalha também não
vislumbra "luz ao fundo túnel" para 2024». E as urgências como já
referimos são o eterno cepo das marradas: «Urgência de obstetrícia no Santa
Maria sem médicos vários dias. A administração do Hospital de Santa Maria, em
Lisboa, terá entregado o mapa de Dezembro com vários dias sem médicos». É
perfeitamente compreensível que os médicos, como quaisquer outros profissionais
da saúde ou cidadão mortal, não possuem o dom da ubiquidade, se estão no
privado, não podem estar no público ao mesmo tempo.
O papel da Ordem dos Médicos na
substituição do SNS pelo empresariado privado
Foi igualmente manchete o «SNS celebra 44 anos
com a “grande reforma” das ULS», ou seja, a reforma conduzida Direcção-Executiva
do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) tem esse objectivo bem definido:
privatizar a saúde, ficando o SNS como prestador de cuidados mínimos, em termos
de assistencialismo, ao mesmo tempo que funcionará como instrumento para
financiar o sector privado através de diversos meios, um dos mais importantes e
já funcionar m pleno é a compra dos cuidados prestados pelos diferentes
empresários, alguns dos quais ex-funcionários do próprio SNS que foram para o
privado não como assalariados mas como empresários (“O negócio milionário da
saúde privada”, Sábado, 26.10.2023).
É nesta qualidade de empresário que muitos
médicos têm abandonado o SNS para depois vender ao estado por preço a dobrar ou
a triplicar o que não faziam enquanto seus empregados. Este fenómeno já
acontecera em outras empresas que foram privatizadas, o melhor exemplo é o da
EDP que fechou serviços e mandou embora engenheiros que depois passaram a
prestar esses mesmos serviços mas na qualidade de empresários. Aqui nada de
novo, é a entrada em força do capitalismo, com as suas regras e modos de
gestão, liquidando tudo o que possas cheirar a gestão ou propriedade pública
que possa beneficiar o cidadão utente. O leitmotiv é sempre o lucro.
Esta política de degradação e de
empresarialização da saúde começou nos idos da década de 80 do século passado
com a lei de gestão hospitalar (1988) de Cavaco Silva, mas que tem vindo a
crescer gradualmente ao longo deste tempo, acentuando-se, contudo, nestes oito
anos de governo dito “socialista”. Transformação esta conduzida pela Ordem dos
Médicos e protagonizada pelos seus sucessivos bastonários que, trabalhando
simultaneamente no público e no privado, tornaram o SNS refém dos seus
interesses corporativos e partidários.
A entrada em listas do PSD para as próximas
eleições legislativas do anterior bastonário tira as dúvidas a quem
eventualmente as tivesse e, por outro lado, prova que os problemas da classe
profissional dos médicos do SNS têm sido utilizados na luta partidária contra
os governos do PS e para reforço dos privilégios de directores e chefes de
serviço e restantes médicos seniores em detrimento dos médicos internos que
agora iniciam a carreira. Foram estes ditos “tubarões da medicina”, com a
colaboração activa das administrações hospitalares, que criaram as longas
listas de espera para cirurgias, consultas ou exames complementares de
diagnóstico.
Os governos PS e PSD paulatinamente
transformaram a saúde em negócio lucrativo para os privados, seguindo as
inúmeras e insistentes directivas dimanadas por Bruxelas, cada um competiu com
o outro, conhecem-se médicos quer de um quer de outro partido que acumulam o
público com o privado, traficando doentes de um lado para o outro. Alguns
exemplos: director de serviço do PS que acumula o hospital público com a
direcção da faculdade e com consultas em hospital privado e ainda é sócio de
clínica privada na cidade de Coimbra; outra figura importante, tendo pertencido
ou ainda pertence à direcção nacional do PS, foi nomeado para director de
serviço, apesar de não ter curriculum para tal porque nem doutorado era, com a
condição, que foi aceite, de não abdicar do consultório que possuía e ainda possui
depois de reformado nas proximidades do hospital. Na privatização, os dois
partidos são simplesmente as duas faces da mesma moeda.
A luta dos médicos e nem todos os médicos
são iguais
Percebe-se bem que os médicos não se podem
enfiar todos no mesmo saco, ao lado dos caciques e tubarões da medicina com
nome estabelecido na praça, há os internos, geral e especialidade, que estão ainda
a aprender, que não podem reivindicar, porque os exames são fatais e nessa
condição deixam-se explorar pelos chefes que lhes atiram para cima o trabalho
que a eles compete enquanto vão para o privado ou tratar de assuntos pessoais.
Conhecemos inúmeros casos destes e em diversos serviços hospitalares: alguns
vão ao hospital de motoreta ou de bicicleta para fintar o trânsito, colocam o
dedo no biométrico e vão tratar da vidinha, e os directores de serviço até
gozam de “horário flexível”, protegendo-se uns aos outros. É um gozo e um
fartar!
A greve às horas extraordinárias por parte dos
médicos, quando 90% deles acumulam com privado, a começar pela médica que
assumiu a direcção da luta desde o início, os “médicos em luta”, que parece
trabalhar em mais dois hospitais privados, CUF e LAPA, invocam a exaustão, o
que não deixa de possuir algum fundamento de verdade já que se trata de uma das
consequências da tal gestão capitalista da saúde, mas também encerra muito de
oportunismo. Porque, e sublinhamos, a luta está a ser conduzida não pelos
“escravos” que estão a completar a sua formação, os internos, os que realmente
sofrem de stress laboral, mas pela elite que faz da medicina um modo de
enriquecimento.
O problema não se resolve, como pensam alguns
partidos da oposição, em dar apenas melhores condições e melhores salários aos
trabalhadores do SNS, há que separar de vez e de forma clara o público do
privado. Se um jornalista ou um trabalhador do sector automóvel, por exemplo,
não tem o direito de trabalhar ao mesmo tempo em empresa concorrente ou ele
próprio fazer a concorrência através de carocas, pela simples razão que será
motivo de justa causa para despedimento, então por que razão os médicos, e não
só, podem usufruir desse privilégio? A explicação é simples: a Ordem dos
Médicos e o Governo estão conluiados na destruição do SNS.
O Estado/Governo demite-se da sua função
social
Não é novidade para ninguém que o Governo, ou
seja, o Estado, há muito se demitiu do seu papel de prestador de serviços de
carácter social e, especialmente, serviços de qualidade, é assim na educação,
na segurança social, e é na saúde, que consiste no bem mais essencial e
estimado pelo indivíduo.
Os velhos estão à sua sorte, mais de metade
dos lares são ilegais e mesmos os legais muitos deles não possuem as mínimas
condições de humanização. O Governo/Estado demitiu-se, entregou a missão aos
privados e principalmente à Igreja que constantemente reivindica mais dinheiro
como acabou de acontecer, indo Costa a correr e satisfazer a vontade clerical
com o reforço de financiamento. Percebe-se, vai haver brevemente eleições e é
preciso ter as boas graças da Igreja Católica e os votos dos seus paroquianos.
Não há jardins de infância em número suficiente,
qual a solução? O Estado/Governo autoriza o aumento do número de vagas dos
jardins infantis a começar pelos privados a quem dá dinheiro para aceitar
crianças de famílias mais carenciadas em termos de gratuitidade. Do mesmo modo,
não há uma rede pública de cuidados continuados, então vai-se dar dinheiro aos
privados para resolver a solução. A mesma mezinha se utiliza para resolver a
falta de residências para estudantes ou para criar um mercado de habitação para
arrendamento a preços acessíveis: dá-se dinheiro aos privados.
E a mesma receita desde algum tempo, não é de
agora, mas que se fomentou exponencialmente a partir da pandemia da covid-19
(bendita e santa pandemia!) para se resolver os problemas dos congestionamentos
das urgências ou falta de camas no SNS. Vem a administração dos CHUC anunciar o
reforço de 25 camas nas Urgências, poderia também e já agora esclarecer quantas
camas foram encerradas desde alguns anos para, entretanto, se dar espaço para
os hospitais privados, que floresceram como cogumelos e, ainda por cima, nas
suas proximidades e usando siglas muito semelhantes aos do hospital público.
O Estado/Governo tem feito tudo e mais alguma
coisa para transformar a saúde num negócio como qualquer outro, com o SNS a
funcionar como vulgar empresa privada capitalista, desde a mudança de estatuto
dos hospitais (empresarialização), substituição de funcionários com contrato a
tempo indeterminado por funcionários em contrato individual e, para cumulo da
escravidão, contratação de trabalhadores, incluindo médicos, a empresas de
trabalho temporário, algumas das quais com sócios que são simultaneamente
funcionários do SNS, como aconteceu aqui há alguns anos no Hospital dos Covões,
tendo sido, como é obvio, impugnado o concurso que tinha beneficiado uma dessas
empresas; o caso veio na imprensa local. É o fartar vilanagem!
Saúde, um negócio como qualquer outro
A CIP veio recentemente reclamar o pagamento
das dívidas do SNS aos fornecedores, apontando como necessária a injecção de
pelo menos 750 milhões de euros, o Governo PS de pronto e como estamos em
vésperas de eleições satisfez a reivindicação e veio a terreiro gabar-se de que
nunca a dívida do SNS foi tão baixa como agora. Devemos relembrar que todo o
material, consumíveis, serviços, etc. são vendidos ao estado a um valor muito
superior ao seu real valor no mercado já para fazer face aos eventuais atrasos,
segundo os vendedores. E muito desse material, nomeadamente medicamentos,
poderia ser produzido por empresas públicas e não por privados, o que faria
baixar grandemente a despesa na saúde. Convém referir que a corrupção nos
hospitais é mais do que farta e muita gente enriquece à custa do SNS. Se as
contas fossem bem feitas, chegaríamos facilmente à conclusão que muitos dos
fornecedores reclamantes é que teriam de pagar ao Estado.
Se a despesa das famílias em saúde é o dobro
da média da Europa, como mostram as estatísticas e papagueiam os media, podem
agradecer ao Governo PS&PSD que transformou, ao longo destes 44 anos de
vida do SNS, a saúde em fonte de lucro para os inúmeros lóbis, que são
empreendedores de “sucesso” à custa dos dinheiros públicos. Mas, ao que parece,
a despesa em saúde só existe para algumas famílias e não para todas, convém
também falar do caso das gémeas, que são luso-brasileiras, mas não se sabe bem
como, que beneficiaram de um tratamento de 4 milhões de euros, comprovadamente
ineficaz, pago pelo erário público e graças à intervenção de sua excelência o
presidente da república. Estamos em terra em que alguém que não tem padrinho morre
moiro; nós, povo português, corremos o risco de morrermos todos moiros Não
deixa de ser curioso que as gémeas tiveram primeiro a consulta marcada no
privado (Lusíadas) pela médica que acabou por fazer o tratamento no público.
Para falar em medicamentos, são os milhões de
euros, melhor, centenas de milhões desperdiçados pelo Governo PS em compra de
vacinas que não se administram, e de necessidade duvidosa, de medicamentos sem
efeito comprovado, é o Zolgensma que foi usado em mais crianças, é o Remdesivir,
que já provou não só a ineficácia contra a coivd-19 como possui efeitos
colaterais perigosíssimos, são medicamentos redundantes quando existe no
mercado medicamentos mais baratos e eficazes, mas que não são do interesse dos
laboratórios farmacêuticos, que chegam ao ponto de se arrogarem a impor aos
governos contratos com clausulas secretas, sigilo sobre os preços e, mais
recentemente, retirada do preço das embalagens, o que, assim, facilitará a
especulação de preços. Alguns, ou talvez muitos, médicos, a troco de muitos
milhares de euros, funcionam como intermediários destes negócios
multimilionários.
As mafias tomaram decididamente conta do
negócio da saúde, e não será com governos constituídos pelos partidos do
establishment que se conseguirá salvar o SNS. No sexto fórum das Ordens
Profissionais, organizado pela Ageas Seguros, que reuniu diversos “peritos” da
saúde escolhidos a dedo, “debateram” os problemas do Sistema Nacional de Saúde
no sentido de que este terá de integrar o privado, deixará de ser “Serviço”
para ser “Sistema”. O tema não deixou dúvidas: "A importância dos grupos
de saúde privados no sistema de saúde", uma realidade considerada “incontornável”.
Rui Diniz, presidente da Comissão Executiva CUF que, considerando um universo
de cinco milhões de pessoas com seguros de saúde, incluindo a ADSE, não se
engasgou: "Os privados estão a prestar serviços todos os dias, a fazer
cirurgias e a dar consultas." Mas querem mais, parece que o trabalho de
liquidação ainda não chegou ao fim. Será facto consumado e dificilmente se
conseguirá arrancar o SNS das garras dos abutres se o povo português continuar
a confiar nos partidos do costume.
Imagem de destaque: henricartoon
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