por António Garcia Pereira
«Os
últimos acontecimentos verificados a propósito da greve dos
enfermeiros, da requisição civil decretada pelo Governo e da
gigantesca campanha de manipulação levada a cabo pela sua “tropa
de elite” de comentadores e opinantes, não devem permitir que
deixemos de ver o que é essencial e, sobretudo, que deixemos de
reflectir sobre aquilo que está aqui verdadeiramente em causa.
Creio,
assim, que se impõe revisitar, ainda que de forma um pouco extensa,
uma série de pontos, relevantes
e reais,
que são precisamente aqueles que o Governo do Sr. Costa e os seus
apoiantes precisamente não querem que se discutam e aclarem aos
gritos demagógicos de “eu sou pela vida!”, de “não admito
greves que ponham em causa a vida e a saúde dos doentes!” e de
“eles (os enfermeiros) estão ao serviço de interesses
inconfessáveis e querem é destruir o Serviço Nacional de Saúde!”.
1)
Reivindicações
Os
enfermeiros são uma classe profissional profundamente preocupada,
dedicada e empenhada nos cuidados de saúde dos pacientes a seu
cargo. E as suas reivindicações são essencialmente quatro, e todas
elas inteiramente justas”:
Equiparação
de vencimento aos outros técnicos superiores da saúde com
habilitações literárias idênticas, como os farmacêuticos, os
psicólogos e os nutricionistas (os quais têm vencimentos iniciais
de 1.600€ mensais, enquanto os enfermeiros, mesmo que com mestrado
ou até doutoramento, têm 1.200€);
a
recuperação da carreira (em termos de categorias) destruída há
cerca de 10 anos por outra Ministra da Saúde (Ana Jorge) de um
outro governo do PS, com o reconhecimento quer de 3 categorias,
correspondentes aos diferentes níveis de responsabilidade, quer,
também, da respectiva remuneração. O Governo diz que está a
fazer isso, mas a verdade é que a grelha que quer aprovar, em
termos salariais, representa 0 de valorização salarial já que a
diferença entre um enfermeiro e um enfermeiro especialista será de
150,00€, que é exactamente aquilo que desde 2018 e por força da
luta, em 2017, dos enfermeiros especialistas, já é pago a estes a
título de “suplemento”;
uma
carreira justa também em termos de evolução de imediato e de
futuro, já que, com a proposta do Governo, os enfermeiros – que,
relembre-se, hoje estão praticamente todos (mais de 90%) na base da
carreira, recebendo 1.201,48€ brutos mensais, tenham eles 1, 5, 10
ou mais de 20 anos de profissão! – terão 11 níveis de evolução,
levando em média 10 anos para subir de nível (o que significa um
século para atingir o topo da carreira!?);
a
idade da reforma aos 57 anos, devido à elevada carga física com
procedimentos técnicos e físicos muito exigentes, à movimentação
de pesos muitas vezes superiores ao próprio peso, ao risco de
contaminação, à penosidade resultante do excesso de carga de
trabalho (há muitos serviços que só funcionam com os enfermeiros
a prestarem regularmente horas extraordinárias em cima das horas
normais), dos turnos, e da impossibilidade prática de os
enfermeiros mais velhos serem dispensados dos turnos e do trabalho
nocturno, e enfim à dureza psicológica decorrente do contacto
permanente com a dor, o sofrimento e até a morte dos pacientes a
seu cargo.
2)
No tempo do Passos Coelho os enfermeiros estavam calados?
As
reivindicações antes referidas – ao contrário do que se tem
ouvido dizer – são um “ponto de partida” negocial e já são
antigas, tendo sido sucessivamente apresentadas aos diversos
governos, e designadamente ao de Coelho/Portas. Mas foram assumindo
cada vez mais premência quer com o agravamento progressivo das
condições de trabalho dos enfermeiros nos últimos anos, quer com a
sistemática postura dos diversos ministros da Saúde, em particular
os últimos (Paulo Macedo, Adalberto Campos Fernandes e Marta
Temido), consistente em fazerem contínuas e públicas declarações
de “disponibilidade para o diálogo”, mas depois, e na prática,
se recusarem a negociar de forma séria o que quer que fosse. O saco
dos enfermeiros foi assim enchendo e enchendo até que, como era
inevitável, um dia transbordou de vez. E foi o que agora aconteceu.
Mas se
a dignidade e as condições mínimas adequadas ao exercício da
profissão de enfermeiro foram assim sendo sucessivamente degradadas
ao longo dos últimos 10/15 anos, a verdade é que essa degradação
se acentuou de forma muito particular a partir de 2017.
É
que Portugal é, segundo os dados da própria OCDE, o país com menor
número de enfermeiros por 100.000 habitantes (4,2), quando a média
geral é de 9,2. Há, como já referido, inúmeros serviços que
apenas conseguem funcionar com um esforço sobre-humano dos
enfermeiros, trabalhando as horas dos seus turnos mais uma coisa
inconcebível que são as chamadas “horas extraordinárias
programadas” (ou seja, horas extra, não para fazer face a
situações excepcionais, mas sim como meio “normal” de suprir
necessidades, violando assim o próprio conceito legal de
horas extraordinárias).
Ora,
face a esta situação, o Governo de Costa tem, de forma
manipulatória, anunciado que tem contratado mais enfermeiros, mas
sem que isso represente afinal mais enfermeiros ao serviço. Como é
tal possível? É, infelizmente, bem simples. Por exemplo, até 2017
um determinado serviço funcionava com 15 enfermeiros, sendo 10 dos
quadros (e cujos salários constam assim das “remunerações de
pessoal”) e 5 contratados através de empresas prestadoras de
serviços (e cujos valores entravam pela rubrica, não de salários,
mas de “serviços” do Hospital). Com a declaração da
inconveniência ou até da ilicitude deste tipo de contratação,
esses enfermeiros foram mandados embora, e o Governo contratou então
para os quadros (apenas) mais 2. E, assim, a Ministra da Saúde pôde,
mais uma vez, intoxicar a opinião pública proclamando que até
aumentou em 20% (de 10 para 12) o número de enfermeiros daquele
serviço, quando na realidade eles diminuíram de 15 para 12!
3)
O “perigo” dos novos sindicatos
A
chamada “greve cirúrgica” decretada pelas 2 associações
sindicais, o Sindepor e a ASPE, é uma greve que perturba
profundamente o Poder. E não só o Governo como também os
Sindicatos tradicionais, desde logo porque, não tendo aqueles
sindicatos elos de ligação político-partidária, as formas de
controle habitualmente usadas pelos partidos da área do Poder (como,
por exemplo, o telefonemazinho para o dirigente do sindicato ou da
confederação sindical para que trate de acalmar as respectivas
bases…) aqui não funcionam. E os novos sindicatos, que já não se
satisfazem com uns protestos simbólicos à porta do Ministério ou
com umas formas de luta totalmente inócuas (como os
abaixo-assinados, as cartas abertas ou até as greves às
sextas-feiras de tarde), são perigosos, quer para o Governo, quer
para os sindicatos tradicionais, que assim veem as lutas e os
trabalhadores nelas empenhados escaparem ao seu controle. E,
desesperados, não raras vezes se juntam até à entidade empregadora
para atacar e discriminar os outros sindicatos. Não nos esqueçamos
de que já vimos este “filme” nas recentes lutas dos professores
e dos estivadores (como sucedeu com o STOP e o SEAL a serem atacados
e até, no primeiro caso, excluídos das negociações, quer por
patrões quer por outras associações sindicais!).
É
este autêntico pavor por a luta dos enfermeiros ter escapado ao
controle dos ditos sindicatos “tradicionais” que leva não só o
Governo do Sr. António Costa ao desespero e ao frenesim no ataque a
essa mesma luta, como à complacência, senão à cumplicidade, com
esses ataques, e inclusive com a própria requisição civil, por
parte dos mesmos sindicatos “tradicionais”.
4)
Porque não cede o Governo?
António
Costa e o seu Governo são bem sabedores de que têm inúmeros outros
trabalhadores a atingirem o ponto de saturação quanto ao
espezinhamento dos seus direitos e às contínuas falinhas mansas do
diálogo sem qualquer conteúdo real e concreto. Desde os próprios
médicos e outros trabalhadores da Saúde até aos diversos
profissionais do sector da Justiça, da Administração Interna, das
Finanças, etc., para já não falar dos trabalhadores do sector
laboral privado que constatam que o Governo não quer mexer uma palha
nas mais gravosas medidas da Tróica, como a da facilitação e
drástico embaratecimento da contratação precária e dos
despedimentos colectivos, por extinção do posto de trabalho e por
inadaptação, bem como a da caducidade da contratação colectiva.
E, por
isso mesmo, Costa quer a todo o custo destruir esta greve, seja de
que forma for, para passar a mensagem aos outros trabalhadores de que
“quem se mete com o Governo PS, leva!” (lembram-se desta frase de
Jorge Coelho?) e de que nem pensem em fazer greves e/ou recorrer a
formas de financiamento colaborativo como forma de combater a arma
anti-greve favorita dos patrões que é a asfixia financeira).
O
empenho difamatório, persecutório e ameaçador das actuações do
Sr. António Costa e do seu governo têm aí a sua razão principal.
E todos os trabalhadores do país devem ver hoje nos enfermeiros
aquilo que o Governo lhes reserva para amanhã, quando se fartarem em
definitivo das tais “falinhas mansas” sem conteúdo e das lutas
“folclóricas” e se dispuserem a combater a sério.
(...)