sábado, 12 de agosto de 2023

A saúde a ser estorricada

 

rodrigocartoon 

Enquanto o governo vai discreta e paulatinamente privatizando a Saúde, os trabalhadores do SNS vão fazendo umas greves, embora de forma dispersa e sem grandes resultados à vista, para não dizer nenhuns, perante a intransigência do governo que sabe de antemão que dali não sairá grandes arroubos de luta.

A proletarização dos médicos

Os médicos queixam-se da “arrogância” do governo e de “provocação” das propostas de subidas salariais por parte daquele. Os dirigentes da FNAM puxam para um lado, têm o desplante de dizer que em Portugal não há falta de médicos, ela existirá somente no SNS, ora toda a gente sabe que isso não é verdade; e o líder do SIM empurra para o outro, preocupando-se mais em seguir a agenda do seu partido, o PSD, em fragilizar o governo do que propriamente em defender os interesses da classe que diz representar. Interessante constatar que é este médico que mais vezes é solicitado pelas televisões. Entretanto os salários continuarão miseráveis e a carreira muito longe de ser atractiva.

Em relação aos farmacêuticos, estes ainda são os mais esforçados mas, como pouco numerosos e sem grande protagonismo no SNS, a luta acaba por morrer na praia. Os enfermeiros, cujo número de organizações sindicais não tem deixado de crescer por razão, pelo menos em parte, da ineficácia e colaboração com os governos pelos sindicatos mais antigos, têm-se ficado por greves sectoriais e regionais convocadas ora por um ou por outro sindicato. Costa continua com os sindicatos enfiados no bolso, à medida que vai proletarizando os médicos e restantes trabalhadores técnicos do SNS.

Privatizar a Saúde doucement

O governo vai regozijando com este movimento contestatário fragmentado, incapaz de mudar o que quer que seja, ao mesmo tempo que vai sorrateiramente desfazendo o SNS, gastar o dinheiro destinado à Saúde na compra de serviços aos privados. Acabou de ser anunciado que o Estado, ou seja, o governo PS, vai pagar à Santa Casa, isto é, à Igreja Católica, e aos negociantes privados por cada pessoa em internamento social no SNS entre 1400 e 1770 euros por mês que venham a receber.

Ora, calcula-se que neste momento exista mais de 1600 pessoas internadas, é fácil fazer as contas e concluir que este será mais um chorudo negócio para estes traficantes de doentes e, no caso, também pobres. Ser doente e, cumulativamente, pobre constitui uma fonte certa e segura para que alguém possa, à custa do estado (saliente-se), enriquecer.

Não será motivo de surpresa que de vez em quando surja um figurão, geralmente ligado à saúde, defender que os problemas do SNS só serão cabalmente resolvidos se o sector social e o privado se integrarem no SNS como “um todo”. Desta vez, foi Carlos Robalo Cordeiro, funcionário do SNS, pessoa ligada ao PS, director do serviço de Pneumologia A dos CHUC e, curiosamente, também pneumologista responsável da rede (privado) Hospital da Luz, que, por sua vez e por coincidência, situado a poucas centenas de metros dos HUC. Facilmente se explica que as longas listas de espera para consultas, cirurgias, exames complementares de diagnóstico foram, em parte, uma criação de alguns médicos que sabotaram o SNS.

A ERS (Entidade Reguladora da Saúde) veio com um estudo, como isso fosse alguma novidade, onde mostra que a saúde privada é dominante no interior do país, quase de monopólio, ou seja, as pessoas não têm outra alternativa, o que inevitavelmente traz riscos para os utentes do SNS. Há muito que é público que os portugueses são aqueles que, dentro da União Europeia, mais gastam do seu bolso com os cuidados de saúde; esta realidade deve-se apenas à dificuldade de acesso aos diversos serviços de saúde que, devido à política conduzida pelos sucessivos governos dos dois principais partidos, PSD e PS, tem sido encerrados. Não dá para tirar de um para dar ao outro.

Essa política tem sido a política de encerramento de urgências nos centros de saúde, extinção de camas nos hospitais e não contratação efectiva, não precária, dos trabalhadores, médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e outros. Claro que o acesso é mais difícil para quem vive no interior, aí a desertificação é primeiro e essencialmente humana. E quando fecha um serviço do SNS abre logo ao lado, ou já está aberto e a funcionar como aconteceu em Coimbra, um serviço privado. O negócio, como mostra a ERS, tem prosperado rapidamente, “apenas” 70% entre 2011 e 2021. Negócio mais rentável, mas com mais riscos, somente o da droga.

A degradação intencional dos cuidados de saúde públicos

A política do PSD e PS, não nos cansamos de repetir, quanto à saúde é exactamente a mesma, difere unicamente no discurso e na velocidade da execução e obedece às orientações impostas por Bruxelas. É uma estratégia, e mais: não se resume à falta de serviços ou de pessoal, trata-se igualmente degradar o que vai ficando, quanto à manutenção e renovação de equipamento, que não são feitas, quer à motivação do pessoal, que, somados, dão como resultado esperado a degradação da qualidade dos cuidados prestados, afugentando assim os utentes para o privado… porque o “privado é que é bom”.

Foi notícia recente de 15 bebés terem sido colonizados com bactéria multirresistente aos antibióticos no Hospital de Santa Maria em Lisboa, o que significa que não apresentaram infecção mas a situação foi considerada delicada, como é óbvio. Para quem anda há muitos anos em hospitais sabe perfeitamente que o local privilegiado para se apanhar uma infecção das boas ou até ter um acidente, por exemplo uma queda da cama, é o hospital, razão pela qual os internamentos devem ser efectuados em situação de necessidade indubitável e pelo menor período de tempo possível. Ora, um tão grande número de contaminações só indicia que os cuidados de assepsia e de higienização estão em falta.

O resultado lógico deste incidente foi o encerramento do serviço de Neonatalogia do principal hospital do país, cujo bloco de partos já fez correr muita tinta e horas televisivas de propaganda contra o SNS que, fazendo fé nos arautos da falência do SNS, há muito que deixou de ser capaz de responder às necessidades do povo português. Curiosamente, os mesmos media mainstream, pouco ou nada referem quando se trata dos privados que fazem os partos, na maioria das vezes, em simples salas de cirurgia sem as condições mínimas de um bloco dedicado aos partos, não possuindo número suficiente de obstetras e ginecologistas que a lei exige – parece que a exigência só é válida para o público –, e ainda mais grave, na maioria das vezes os partos são feitos por cesariana, com claro prejuízo para a mães e bebé, porque… é mais rentável. Portugal é o país onde, sem justificação aparente, se realizam mais partos na União Europeia.

A falta de material e a falta de pessoal pode explicar o aparecimento de mais infecções hospitalares ou de acidentes e casos de negligência, mas não explica tudo, porque há situações, e nós conhecemos algumas, em que a pressa de despachar serviço ou a preocupação de alguns médicos de correr para o privado é que são as verdadeiras razões. Em uma maternidade, que não identificamos nem pelo nome nem pela localização, pessoal que ali trabalha tem denunciado o facto de muitas parturientes serem colocadas em camas sem previamente se desinfectar a unidade, mudando apenas a roupa da cama, por “ordem” do/a médico/a chefe de equipa. E mais casos não têm acontecido por oposição de auxiliares de acção médica que se recusam a ser cúmplices em actos que poderemos considerar criminosos.

O “sistema” nacional de saúde ou o hospedeiro e o parasita

A opção de dar dinheiro aos privados, financiando-os muitas vezes quase a 100%, em vez de investir no SNS é opção declaradamente ideológica. Aliás, a integração dos privados e do dito sector “social”, que de social tem bem pouco, já é em si o culminar do processo de financiamento na totalidade de um sector que funciona como o vírus, isto é, para sobreviver tem de parasitar o hospedeiro mas não o pode matar, porque caso aconteça, ele próprio sucumbirá. O SNS, se estas políticas forem levadas até ao fim e não travadas pela contestação da população utente, será um invólucro e o sustento para o negócio, garantido a 100% e sem riscos, de enriquecimento de uns poucos à custa da pobreza e da doença de muitos. O chefe do PSD sabe muito bem que “complexo ideológico” como “marca” da saúde de Costa não difere do seu, ambos ambicionam a destruição do SNS como serviço universal, geral e gratuito (há muito que o deixou de ser, passou a “tendencial”) para ser um sistema para o lucro. Assistimos à transformação capitalista da saúde e ao mesmo tempo à proletarização da classe média que ainda trabalha no SNS.

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