terça-feira, 28 de junho de 2022

O privado é que é bom!

Homem operado ao olho errado em Coimbra. Clínica questionou "preferência"

É o título da notícia que dá conta de um cidadão que, enviado do CHUC para a clínica privada Sanfil a fim de ser intervencionado ao olho esquerdo para remoção de catarata, acabou por ser operado ao olho direito. Uma pequena falha, porque não foi no SNS! Não parece ter sido abertura de telejornal nas televisões privadas nem fez primeira página na imprensa escrita mainstream, não interessa denegrir o privado, muito menos agora quando se encetou uma campanha mórbida contra o público devido às falhas dos serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia em alguns hospitais do SNS.

A história conta-se rapidamente. O doente, de sexo masculino, foi enviado pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, no quadro do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), para a Sanfil – Casa de Saúde de Santa Filomena, também em Coimbra, em 8 de Maio de 2021, onde foi operado ao olho errado, foi ao direito em vez do esquerdo. Terá havido alguns erros por parte da clínica e do médico, segundo a ERS (Entidade Reguladora da Saúde) que dá a conhecer o caso: primeiro, não foi respeitado o prazo previsto na lei entre aceitação do VC (vale de cirurgia) pelo hospital de destino (15 de Abril de 2021) e a realização da cirurgia (8 de Maio de 2021); segundo, a Sanfil questionou o utente sobre qual o olho a operar em vez de confirmar na documentação enviada pelo CHUC e caso esta fosse omissa ou pouco clara – a clínica privada desculpa-se por falta desta informação em campo próprio da documentação electrónica, mas constava em outra documentação enviada, segundo a ERS –, o esclarecimento seria sempre dada por esta última instituição, o que não aconteceu por não ter sido solicitado. Depois do erro, o doente foi devolvido à precedência, onde foi operado ao olho doente, o olho esquerdo, em 16 de Dezembro de 2021, e “recebido o acompanhamento pós-cirúrgico subsequentemente”.

Diversas perguntas se poderão fazer de imediato:

Por que carga de água há listas de espera em oftalmologia para intervenções cirúrgicas se os médicos quase se estorvam uns aos outros no serviço?

Por que razão são estas intervenções, as mais fáceis de fazer, enviadas para os privados?

Qual foi a razão para a criação do tal Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) em vez de se dotar o CHUC, neste caso concreto, do número de profissionais de saúde ou até salas operatórias para se dar vazão às cirurgias? Será um boicote por parte dos médicos para irem fazer no privado o que não fazem, e deviam fazer, no público?

Quantos médicos oftalmologistas do CHUC estão em dedicação exclusiva, sabendo-se que muitos não são assim tão jovens?

Quem é responsável pelo erro ocorrido na Sanfil, a clínica ou o médico que operou o olho errado, sabendo-se que aqui os médicos trabalham em regime de empresário e não de funcionário?

Quem é o médico responsável pelo erro, por que não é conhecido o nome, será que também trabalha no CHUC?

Por que razão as asneiras feitas no privado são depois emendadas no público, não deveria ser o SNS indemnizado pelo privado em situações desta natureza?

Haverá comissões a correr por debaixo da mesa neste outsourcing, sendo conhecido o historial da Sanfil que, já há alguns anos, foi acusada de ter sido favorecida por um dirigente da ARS Centro, responsável pela contratação das cirurgias, que depois, e como recompensa, foi ocupar lugar privilegiado naquela clínica?

Outras questões se poderiam colocar, mas uma coisa é certa: o serviço de oftalmologia do CHUC, e que nós conhecemos bem, é um serviço de referência e até de excelência não fosse o facto de a grande maioria dos médicos, com especial realce para os mais graduados, incluindo professores, acumularem o público com o privado e, aqui, em vários sítios.

É este um dos problemas que contaminam o SNS em geral e que a Ordem dos Médicos não quer encarar de frente, preferindo assobiar para o lado, reivindicando agora salários equiparados aos dos magistrados. E a exclusividade, não a “dedicação plena” que é coisa demasiado ambígua, não é para implementar, segundo a douta opinião do sor dotor, assim como, diga-se em abono da verdade, da Ordem dos Enfermeiros ou dos sindicatos do sector.

Parece que a pressa em enriquecer é mais importante do que fazer face às longas listas de espera para consultas, exames e cirurgias. Alguns oftalmologistas do CHUC, e agora voltando ao tema que origina a notícia, talvez mais honestos ou apressados na acumulação de riqueza, deixaram o público e estabeleceram-se na cidade como empresários da saúde oftálmica. E é este o caminho que a saúde leva em Portugal, tornar-se uma actividade económica como qualquer outra e onde alguns (poucos) possam enriquecer à tripa forra. No final, o contribuinte paga, e paga duas vezes.

Dois reparos para concluir:

Um, é recorrente a imprensa não identificar o médico ou médicos envolvidos em eventuais erros ou negligências, contudo, há dois ou três dias, senão estamos em erro, uma jornalista reclamava na televisão do grupo Cofina, Correio da Manhã/TV-Media, a prisão de um médico obstetra que ela responsabilizava pela morte do seu bebé, que não terá sobrevivido pela hesitação daquele clínico em recorrer de imediato a uma cesariana, tendo sido dado a conhecer não só a sua identificação como a fotografia que, por curiosidade, mostrava um indivíduo de raça negra. Claro que a mensagem que passou era de que pretos como médicos só farão asneira; ainda estamos à espera da reacção da Ordem dos Médicos, tão lesta a defender em termos corporativos os associados, em denunciar esta mensagem que, embora subliminar, não deixa de ser racista.

Outro, este caso do doente que foi operado ao olho errado mostra, mais uma vez, que a saúde privada funciona em relação ao SNS como o parasita que vive sugando o hospedeiro, mas que o não pode matar por exaustão, porque, caso isso aconteça, ele próprio perecerá. Assim vai o nosso Serviço Nacional de Saúde, agora sujeito a uma tremenda campanha, onde alguns médicos vão tomando parte activa, e não só a Ordem na pessoa do bastonário, no sentido claro de o degradar o mais possível para assim justificar a privatização da saúde em Portugal através de uma participação cada vez maior não só do sector privado como do dito “social”, este duplamente subsidiado pelos dinheiros público, num futuro SISTEMA  Nacional de Saúde onde a parte pública será o parente pobre para os mais carenciados. E lá se irá a última conquista do 25 de Abril, porque quanto às outras, mais não são do que formais.

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