quinta-feira, 16 de junho de 2022

A cruzada para o desmantelamento do SNS e do sector estado em geral

 

A morte do recém-nascido no Hospital das Caldas da Rainha, atribuída por toda a comunicação corporativa ao encerramento das urgências de obstetrícia por alegada falta de médicos, foi o tiro de partida para a autêntica cruzada desencadeada por todos os órgãos de comunicação mainstream contra o SNS, dando a ilusão de que o querem defender ao apontar as deploráveis falhas, agora mais que evidentes no encerramento de algumas urgências de obstetrícia neste fim de semana, mas que são antigas. Em última instância, o ataque é contra o governo do partido socialista liderado por António Costa. O jornal “Público” – órgão que desde a sua fundação sempre deu prejuízo à proprietária, a família Azevedo, que nunca o encerrou pela importância em formar e formatar opinião pública – é aquele que mais se destaca na cruzada.

A cruzada do jornal “Público”

Contando os artigos sobre o SNS e o estado do Estado, chegamos ao número 14 artigos a malhar no mesmo: a ineficiência do sector público, em geral, e da saúde, em particular. A família Azevedo parece querer investir a fundo na área da saúde e muito possivelmente em outras – no ensino já está instalada com um colégio de topo para aos filhos da classe média alta – que possam ser rentabilizadas na lógica do mercado, para isso há que desacreditar o sector do estado e depois abocanhar os pedaços mais apetitosos em termos de mais-valias. Depois de realizada a contagem dos artigos na edição on-line, no passado sábado, mais uns três ou quatro surgiram ainda no mesmo dia. Onde se inclui o editorial do director sobre o tema e um outro particularmente patético do diretor-adjunto: “O SNS não pode fechar” - quase para chorar!

O esforço não olha a meios e o próprio director é o mais empenhado, jornalista tristemente conhecido pelas crónicas abertamente propagandística e planfetárias, nomeadamente quanto às questões da pandemia covid-19 e agora da guerra da Ucrânia. Fazendo-se notar pela “despublicação” de um artigo considerado politicamente incorrecto sobre a vacinação escrito por um médico colaborador assíduo daquele jornal, já para não falar da tentativa ataque de carácter à historiador Raquel Varela por ter denunciada a situação e cuja penalização foi ter deixado de ali escrever. Decididamente que o “Público” não passa de um vulgar e pouco inteligente órgão de propaganda de uma parte, pelo menos, da nossa elite económica, com o objectivo de pressionar a tomada de determinadas medidas políticas por parte do governo.

Dramatizar (ainda mais) os problemas antigos do SNS

Mas vamos ao que interessa, as notícias quanto à saúde em Portugal apresentadas pelo pasquim em causa são “aterradoras”, e só no dia 11: «Resposta a doentes com cancro cresceu em 2021 mas não compensou início da pandemia… Contratação de mais recursos humanos para o SNS e a criação de um plano de recuperação são algumas das recomendações para atenuar o problema». «Médicos com mais de 65 anos representam 24% do total... Mais de mil clínicos dos centros de saúde podem aposentar-se este ano». «Associações preocupadas com falta de médicos e enfermeiros nos serviços de obstetrícia - Falta de médicos e enfermeiros nos serviços de obstetrícia está a começar a afectar a mortalidade materna». «Interna e director de serviço: 42 anos separam estes médicos que trabalham num SNS “em esforço” - António Sarmento e Carolina Guimarães fazem parte da equipa médica do SNS no Hospital de São João, no Porto.»

Não é difícil perceber quais são os principais problemas que sufocam o SNS, desde falta de médicos, poucas vezes falam da falta de enfermeiros ou de assistentes operacionais e de outros profissionais, dando a ideia que são secundários aos médicos, que é a classe que mais se ausenta do público para acumular simultaneamente com o privado, até à falta de condições, como se lamenta a interna do Hospital de São João «“O que cansa não é ver doentes, é a falta de condições”, diz a jovem médica». Todos se lamentam, mas se déssemos uma volta pelos médicos do SNS, veríamos grande parte deles a boicotar o trabalho nos hospitais públicos e a irem fazer no privado o que não fazem no público, traficando doentes de um lado para o outro.

Entidades que não fazem parte da solução mas do problema

Não deixa de ser enternecedor ouvir um bastonário da Ordem dos Médicos ou um presidente do Sindicato Independente dos Médicos, raramente se ouve alguém de outro sindicato da classe nos media corporativos, principalmente nas televisões, discorrer sobre os problemas do SNS; sabendo-se de antemão que quando se fala em formação de mais médicos logo respondem que não é necessário mais médicos, os que existem chegam. Não disfarçam o incómodo de possível excesso de médicos porque, caso acontecesse, a concorrência seria enorme e os honorários escandalosos que cobram no privado iriam de imediato por água abaixo. Alguns médicos, assim como a Ordem, não fazem parte da solução para o SNS, mas fazem parte do problema. A aspiração a um SNS fraco é indisfarçável, tal como os conflitos de interesses, e comportam-se todos como os parasitas que não querem matar o hospedeiro, apenas enfraquecê-lo, mantê-lo no limiar da sobrevivência, porque caso o matassem eles próprios se suicidariam.

Todos se preocupam com o estado de saúde do SNS, não só as figuras atrás referidas, como o presidente da república, que comenta tudo e mais alguma coisa quando é para alfinetar o governo, mesmo em Londres, longe do país, e em plena excursão patriótica-recreativa, Marcelo não consegue conter a verborreia: «Presidente preocupado com fecho de urgências de obstetrícia, mas desdramatiza problema “específico”… visitou uma escola e um hospital onde trabalham muitos profissionais de saúde portugueses… alvitrando em tom governamental que é preciso “defender o sistema como um todo e ir introduzindo as mudanças necessárias para o adaptar à realidade”. Para quem votou contra a lei do SNS em 1979 e pugna por um “Sistema” Nacional de Saúde, onde caibam privados e sector social (igreja católica), é preciso ter pouca vergonha na cara. Mas já estamos habituados.

Os governos e os partidos da ordem são os principais responsáveis

Nesta magna questão da saúde, talvez a mais sensível para os portugueses em geral, é natural e nem se poderia esperar outra coisa senão ouvir críticas e protestos por parte de todos os partidos da dita oposição parlamentar. Montenegro diz que há “sinais graves de degradação”, não esclarecendo que foi um governo do seu partido que em 1988 decretou a Lei da Gestão Hospitalar, e que marca o início do processo de privatização da saúde em Portugal; e também foi o seu partido, no tempo do duo Coelho&Portas, que mais degradou o SNS, indo além do imposto pela troika e mais enfermeiros e médicos mandou emigrar de Portugal. Ironicamente, no dia 10 de Junho, dia da “Pátria”, foram enaltecidos e condecorados (um deles) por Marcelo numa de populismo desbragado. A demagogia não tem limites para esta gente.

Continuando das putativas oposições, deve-se apontar um Chega, cujo dirigente máximo defende a privatização total da saúde, e no maior dos desplantes reivindica um debate de urgência sobre obstetrícia. O IL, querendo ultrapassar o PSD em todos os assuntos que incomodam o governo, acusa o governo de “irresponsabilidade” e de “incompetência” no problema da falta de médicos obstetras e ginecologistas e, por conseguinte, da impossibilidade de manter abertas todas as urgências destas especialidades. O PCP faz o que lhe compete, «exige medidas do Governo em relação aos serviços de ginecologia e obstetrícia» e o BE vai atrás, esquecendo-se ambos que há pouco mais de meia dúzia de meses andavam com o governo do PS&Costa às costas. Todos estes partidos escamoteiam o essencial das coisas e a verdadeira razão da privatização da saúde em Portugal e da política dúplice do PS.

Bruxelas impõe o negócio do século XXI

Vêm de há muito, desde que Portugal aderiu a CEE/UE, as directivas comunitárias sobre a privatização da saúde em Portugal, processo que logo começou no primeiro governo de maioria absoluta de Cavaco, como já foi apontado, e estendeu-se por todos os governos quer do PSD quer do PS, sem excepção, umas vezes de forma mais rápida e notória, outras em modo mais disfarçado e insidioso, como tem acontecido nos governos do PS em geral. O governo Guterres fica na história por ter dado início às parecerias público-privado na saúde, ideia genial do ex-ministro Correia Campos que vai passeando o resto da existência por tachos públicos e alvitres sobre a salvação (!?) do SNS, e o de Sócrates por ter sido de todos o que mais se excedeu no encerramento de serviços do SNS, maternidades, urgências dos serviços primários, de número de camas, ao mesmo tempo que os privados começaram a proliferar como cogumelos quase no mesmo sítio onde fechavam os serviços do estado.

Com Costa é quando mais se contradiz o discurso com a realidade e a privatização tem seguido, essencialmente, com a compra de serviços ao privado, não se abrem os serviços (e as mais de 3000 camas) que foram encerrados, não se melhoram as carreiras e os salários dos trabalhadores da saúde, aliciando-os para o público, e continua-se com a descapitalização do SNS. A pandemia da covid-19 foi um excelente pretexto para a compra de máscaras, testes, equipamentos (os famigerados ventiladores que agora estão em armazém a ganhar pó e teias de aranha, como acontece nos CHUC), serviços, vacinas e o mais que estará para vir, aos privados e nomeadamente aos grupos farmacêuticos estrangeiros; com médicos dentro do SNS a funcionar como lobistas de toda a sorte de interesses privados, não só médicos como os próprios organismos do estado com a DGS à cabeça; com os diversos Organismos de médicos e farmacêuticos a colher os dividendos do grande negócio, com todos os privados e a igreja católica em bicos de pés e farmacêuticos a dar prova de existência como protagonistas indispensáveis ao SNS; ou melhor dito: mamar nas tetas do orçamento.

O OE-2022 contempla toda esta sorte de clientes – indisfarçavelmente a saúde é o negócio do século XXI. O povo no final é quem paga a factura e, no entanto, tem um SNS cada vez pior. Assim se percebe que se gaste mais dinheiro não com a saúde do povo português, mas para a engorda do negócio. Não é por acaso que foi arranjada para o cargo da tutela uma mulher que é simultaneamente relações públicas e comissária política, e que parece que veio para ficar. Porque sobre questões de saúde, manda Bruxelas. E sobre isto nenhum partido fala, seja de direita ou de esquerda. Em tempo de crise profunda da economia capitalista, esta tem, por força da sua natureza, de englobar todos os sectores da actividade humana; isto é, tudo é passível de se transformar em mercadoria. Se há mercado, tudo se comercializa, tudo tem um preço… até muitos políticos da nossa praça – será tudo uma questão de oferta.

Nota: sobre o outro assunto que é o cepo das marradas do “Público” - O estado da Administração Pública – falaremos detalhadamente em próximo artigo.

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