Escrito em 2007 sem perder actualidade e pertinência
Felícia Moreira morreu a 20 de Fevereiro de
2004 devido a reacções adversas provocadas pelo fármaco “Humira”, utilizado, em
ensaio clínico, para o tratamento da artrite reumatóide. O médico responsável
pela experimentação, ao serviço da multinacional farmacêutica Abbott, recusou
suspender o tratamento apesar das queixas da doente e das alterações profundas
dos resultados analíticos, agora é acusado pelo Ministério Público (MP) de
crime de homicídio por negligência grosseira, enquanto que os outros
responsáveis pelo ensaio, duas médicas do mesmo hospital S. João de Deus do
Porto e dois dirigentes da sucursal portuguesa da Abbott, também constituídos
arguidos viram o caso arquivado.
Este caso foi denunciado pelo filho da vítima,
que deu a cara perante os órgãos de comunicação social (que escondem a
identificação do médico), afirmando que conhece mais três casos de doentes
submetidos ao mesmo medicamento que morreram em consequência das reacções
adversas, que na sua mãe foram falência generalizada dos órgãos vitais,
hemorragias e septicémia (infecção generalizada grave). O laboratório diz
desconhecer que tenha havido mais mortes ligadas ao ensaio deste medicamento,
assim como afirma que foi ilibado da responsabilidade da morte da pessoa em
causa (terá morrido por obra do Espírito Santo!). A Sociedade Portuguesa de
Reumatologia (SPR) veio fazer coro, através da pessoa do seu presidente,
declarando que a SPR “não tem qualquer registo de eventos adversos”
relacionados com este tipo de medicamento, denunciando-se na sua conivência com
os interesses da indústria farmacêutica na medida em que aquela instituição não
monitoriza os ensaios clínicos.
Os ensaios clínicos não são fiscalizados por
ninguém, as comissões de ética existentes nos hospitais públicos limitam-se em
assinar de cruz a autorização para a realização dos mesmos, ficando as
administrações hospitalares fora do conhecimento das reais verbas que são
canalizadas para as direcções clínicas dos serviços onde esses ensaios são
realizados, possuindo cada director de serviço verdadeiros sacos azuis que
ninguém controla. Estes ensaios têm sido para alguns médicos uma boa fonte de
enriquecimento. Embora, por lei os hospitais sejam quem deva receber esses
dinheiros pagos pelos laboratórios e uma pequena parte (10% se não estamos em
erro) deva ser entregue ao director do serviço que, por sua vez, a deve
repartir pelos elementos, médicos e enfermeiros, que participam na
experimentação, não é isso que acontece na realidade.
Os doentes que são submetidos a estes ensaios
geralmente não são informados dos verdadeiros riscos que correm e muitas vezes
são colocados em situação de chantagem: ou submetem-se ou é-lhes subentendido
que poderão não ser tratados. Mortes devido a ensaios são mais frequentes do
que se poderá pensar, só que essas mortes são encobertas: há alguns anos, nos
HUC, foi denunciado o ensaio de fármacos no tratamento de acidentes vasculares
cerebrais (AVC) que se encontravam fora do prazo de validade e a morte de um
doente em eventual consequência desse “tratamento”. Ao enfermeiro que fez a
denúncia foi-lhe levantado inquérito disciplinar, transferido de serviço e proibido,
à boa maneira fascista, de entrar no serviço de onde fora retirado, ordem que o
enfermeiro obviamente não respeitou tendo granjeado o apoio de todos os
colegas.
É quase diário que se noticia casos de
negligência médica, é no Hospital de Faro, onde um homem com Síndrome da Down
(mongolismo) morreu por falta de assistência atempada – ficou três dias numa
maca no corredor do serviço de urgência; os pais de uma criança que nasceu com
a mesma doença, há quatro anos, no Hospital de Braga, esperam ainda pelo resultado
de três processos levantados em consequência de queixas por dolo e negligência
médica que correm nos tribunais administrativos, ficando-se com a ideia de que
os médicos neste país são intocáveis; em Penalva do Castelo, o povo está
indignado pela morte de uma jovem de 23 anos que morreu após ter andado cinco
dias a bater à porta de hospitais e centros de saúde da região, acabando por
sucumbir por falta de tratamento adequado.
A degradação do Serviço Nacional de Saúde
(SNS) é constante e deliberada para dar lugar aos serviços privados de saúde,
pertença de grandes grupos económicos nacionais, que têm investido fortemente
neste negócio, esperando-se que, nos dois próximos anos, esse investimento
atinja as 5000 camas, em 22 hospitais privados. Os serviços de urgência nas
instituições públicas vão fechando, bem como as maternidades, e as
Misericórdias da Igreja vão recebendo benesses, exigindo sempre mais, fazendo
dos dinheiros do Estado um poço sem fundo: ainda 2007 não tinha chegado ao fim,
ou seja, no mês de Setembro, os Hospitais EPE – os tais apresentados pelo
Governo do PS como a salvação do défice da Saúde – tinham já prejuízos
acumulados de cerca de 805 milhões de euros.
Com a privatização da saúde, os portugueses
irão pagar mais dos seus bolsos e o Orçamento do Estado será ainda mais
esmifrado – o saque será a dobrar. E os casos de negligência médica irão
aumentar, beneficiando os seus responsáveis da “compreensão” da nossa justiça,
como no caso daquele empresário de Leiria, que atropelou mortalmente um
trabalhador que seguia na sua motorizada e acusado de homicídio por
negligência, omissão de auxílio e simulação de crime (como se vê um exemplar
cidadão que contribui para o desenvolvimento da economia nacional, já que é
empresário, e amigo do seu semelhante), levou 18 meses de prisão, com pena
suspensa por igual período de tempo.
10 de Dezembro 2007
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