sábado, 10 de junho de 2023

Os ensaios clínicos e as mortes devido à ganância de laboratórios e médicos

 

Escrito em 2007 sem perder actualidade e pertinência

Felícia Moreira morreu a 20 de Fevereiro de 2004 devido a reacções adversas provocadas pelo fármaco “Humira”, utilizado, em ensaio clínico, para o tratamento da artrite reumatóide. O médico responsável pela experimentação, ao serviço da multinacional farmacêutica Abbott, recusou suspender o tratamento apesar das queixas da doente e das alterações profundas dos resultados analíticos, agora é acusado pelo Ministério Público (MP) de crime de homicídio por negligência grosseira, enquanto que os outros responsáveis pelo ensaio, duas médicas do mesmo hospital S. João de Deus do Porto e dois dirigentes da sucursal portuguesa da Abbott, também constituídos arguidos viram o caso arquivado.

Este caso foi denunciado pelo filho da vítima, que deu a cara perante os órgãos de comunicação social (que escondem a identificação do médico), afirmando que conhece mais três casos de doentes submetidos ao mesmo medicamento que morreram em consequência das reacções adversas, que na sua mãe foram falência generalizada dos órgãos vitais, hemorragias e septicémia (infecção generalizada grave). O laboratório diz desconhecer que tenha havido mais mortes ligadas ao ensaio deste medicamento, assim como afirma que foi ilibado da responsabilidade da morte da pessoa em causa (terá morrido por obra do Espírito Santo!). A Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR) veio fazer coro, através da pessoa do seu presidente, declarando que a SPR “não tem qualquer registo de eventos adversos” relacionados com este tipo de medicamento, denunciando-se na sua conivência com os interesses da indústria farmacêutica na medida em que aquela instituição não monitoriza os ensaios clínicos.

Os ensaios clínicos não são fiscalizados por ninguém, as comissões de ética existentes nos hospitais públicos limitam-se em assinar de cruz a autorização para a realização dos mesmos, ficando as administrações hospitalares fora do conhecimento das reais verbas que são canalizadas para as direcções clínicas dos serviços onde esses ensaios são realizados, possuindo cada director de serviço verdadeiros sacos azuis que ninguém controla. Estes ensaios têm sido para alguns médicos uma boa fonte de enriquecimento. Embora, por lei os hospitais sejam quem deva receber esses dinheiros pagos pelos laboratórios e uma pequena parte (10% se não estamos em erro) deva ser entregue ao director do serviço que, por sua vez, a deve repartir pelos elementos, médicos e enfermeiros, que participam na experimentação, não é isso que acontece na realidade.

Os doentes que são submetidos a estes ensaios geralmente não são informados dos verdadeiros riscos que correm e muitas vezes são colocados em situação de chantagem: ou submetem-se ou é-lhes subentendido que poderão não ser tratados. Mortes devido a ensaios são mais frequentes do que se poderá pensar, só que essas mortes são encobertas: há alguns anos, nos HUC, foi denunciado o ensaio de fármacos no tratamento de acidentes vasculares cerebrais (AVC) que se encontravam fora do prazo de validade e a morte de um doente em eventual consequência desse “tratamento”. Ao enfermeiro que fez a denúncia foi-lhe levantado inquérito disciplinar, transferido de serviço e proibido, à boa maneira fascista, de entrar no serviço de onde fora retirado, ordem que o enfermeiro obviamente não respeitou tendo granjeado o apoio de todos os colegas.

É quase diário que se noticia casos de negligência médica, é no Hospital de Faro, onde um homem com Síndrome da Down (mongolismo) morreu por falta de assistência atempada – ficou três dias numa maca no corredor do serviço de urgência; os pais de uma criança que nasceu com a mesma doença, há quatro anos, no Hospital de Braga, esperam ainda pelo resultado de três processos levantados em consequência de queixas por dolo e negligência médica que correm nos tribunais administrativos, ficando-se com a ideia de que os médicos neste país são intocáveis; em Penalva do Castelo, o povo está indignado pela morte de uma jovem de 23 anos que morreu após ter andado cinco dias a bater à porta de hospitais e centros de saúde da região, acabando por sucumbir por falta de tratamento adequado.

A degradação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é constante e deliberada para dar lugar aos serviços privados de saúde, pertença de grandes grupos económicos nacionais, que têm investido fortemente neste negócio, esperando-se que, nos dois próximos anos, esse investimento atinja as 5000 camas, em 22 hospitais privados. Os serviços de urgência nas instituições públicas vão fechando, bem como as maternidades, e as Misericórdias da Igreja vão recebendo benesses, exigindo sempre mais, fazendo dos dinheiros do Estado um poço sem fundo: ainda 2007 não tinha chegado ao fim, ou seja, no mês de Setembro, os Hospitais EPE – os tais apresentados pelo Governo do PS como a salvação do défice da Saúde – tinham já prejuízos acumulados de cerca de 805 milhões de euros.

Com a privatização da saúde, os portugueses irão pagar mais dos seus bolsos e o Orçamento do Estado será ainda mais esmifrado – o saque será a dobrar. E os casos de negligência médica irão aumentar, beneficiando os seus responsáveis da “compreensão” da nossa justiça, como no caso daquele empresário de Leiria, que atropelou mortalmente um trabalhador que seguia na sua motorizada e acusado de homicídio por negligência, omissão de auxílio e simulação de crime (como se vê um exemplar cidadão que contribui para o desenvolvimento da economia nacional, já que é empresário, e amigo do seu semelhante), levou 18 meses de prisão, com pena suspensa por igual período de tempo.

10 de Dezembro 2007

tvi.iol.pt

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