As polémicas ou os casos e casinhos parecem
ter dominado a opinião pública ultimamente em quase todos os domínios da nossa
vida social e política. Agora é a polémica de a Ordem dos Médicos, que pensa
que é ministério da Saúde, que nega ter participado na elaboração do documento
da DGS que determina que os partos normais, ou seja, de baixo risco, sejam
efectuados pelos enfermeiros especialistas da área; afirmação que é contrariada
por Diogo Ayres Campos, coordenador da Comissão de Acompanhamento da Resposta
em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, que defende que a DGS
deve avançar com a orientação já aprovada.
Como birra, o bastonário Carlos Cortes, mais
inclinado para o PS, mantém no entanto a posição do seu antecessor, militante
do PSD que fez do SNS uma arma de arremesso contra o governo e contra o próprio
SNS, recusando a designação de um médico para a CVA (Comissão de
Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente
Assistida), a entidade que será responsável por confirmar o cumprimento dos
processos legais da eutanásia, mostrando mais uma vez que os interesses
que defende são, ao cabo e ao resto, os interesses corporativos de uma classe
profissional que se acha acima do resto da sociedade, como, aliás, terá
denunciado o presidente da Mesa do Colégio da Especialidade dos Enfermeiros
Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica.
Mais do que um conflito de interesses entre
dois grupos profissionais, trata-se aqui de quem está ou não, dentro do serviço
público de saúde, disposto a tentar dar soluções aos principais problemas do
SNS e da população utente do mesmo. Para quem não saiba, deve-se informar, com
base em experiência pessoal de muitos anos, que as enormes listas de espera
para consultas, cirurgias, exames complementares de diagnóstico, foi uma obra
realizada pela classe médica. Especialmente por chefes de serviço e certos
barões instalados no SNS que encontraram no boicote ao seu trabalho dentro do
sector público uma forma de lavar os utentes para o privado onde aí já estariam
disponíveis a prestar os serviços clínicos que no público se recusaram.
Esta foi uma maneira expedita para o
enriquecimento fácil para alguns médicos, contando com a benevolência das
administrações nomeadas pelo governo e por este último, que assim procedia à
privatização da saúde de maneira discreta e que culminou na situação que ora
todos conhecemos. A realização dos partos pela enfermagem, agora
institucionalizada pela DGS, irá com certeza disponibilizar mais tempo para
alguns médicos no sentido de poderem acumular o público com o privado. O que
nem seria razão séria para o protesto da ordem dos médicos se isso não viesse a
representar uma perda de protagonismo e uma prova que a sua actividade não é
assim tão fundamental para o funcionamento regular das instituições públicas de
saúde, bem pelo contrário.
Ainda continuando na área da saúde obstétrica
e ginecológica constata-se que muitos problemas aí existentes são de
responsabilidade de como alguns médicos tratam as utentes, sendo eles os
principais responsáveis (claro que não serão todos) pelos episódios de
violência que aí ocorrem. Em estudo, realizado recentemente, que avaliou a
perceção das mulheres que passaram por trabalho de parto, os dados foram os
seguintes:
«38,1% das parturientes sentiram “falta de
apoio emocional durante o parto” (com variações percentuais entre 28,7% no
Norte e 51,1% no Centro), 31,9% sentiram que “não foram tratadas com
dignidade” (26,9% no Norte e 45,1% no Centro) e 23,3% sentiram que
foram “vítimas de algum tipo de abuso físico, verbal ou emocional” (17,8%
no Norte e, no pior cenário, 32,2% no Centro)”». A curiosidade é confirmar que
na Região Centro a violência na saúde obstétrica é pior do que no resto do
país.
Neste estudo, não se terá entrado em linha de
conta com os palavrões e os gestos bruscos e arrogantes de alguns médicos que
não se coíbem de ter em frente de utentes, familiares e restantes profissionais
de saúde; situação que se agrava quando se trata de utentes de etnia cigana ou
negra e pobre; aqui, alguns restantes profissionais seguem um pouco a conduta
dos médicos, incluindo algumas enfermeiras. Este panorama, repetimos, não é
predominante em todos os serviços, onde há médicos (homens) que só observam as
utentes à frente da enfermeira, mas existe e, então, numa maternidade na Região
Centro que bem conhecemos é quase uma constante, perante a indiferença da direcção
clínica que parece preocupar-se mais com o tacho no privado.
Foi notícia na imprensa que a “falta de blocos operatórios obriga hospitais a gastar
milhões nos privados”. Ora, se isso acontece não será bem pela falta de blocos
operatórios ou de partos, mas mais pela sua má gestão. É frequente em alguns
serviços de cirurgia do SNS marcarem-se intervenções só para a parte da manhã e
em muitas vezes, especialmente quando os diretores são complacentes e
coniventes, nem essas são todas realizadas porque algum senhor cirurgião ou
anestesista tem outras intervenções marcadas após a hora do almoço… mas no
privado. A “falta de blocos” é mais um meio para financiar os privados, a par
das parcerias público privado (PPP) que irão entrar a toda a força com os novos
hospitais que estão a ser construídos com os dinheiros públicos; o novo
hospital de Sintra será o primeiro.
Os
blocos poderiam ser utilizados com cirurgias programadas em pelo menos 16
horas, ou até nas 24 horas, com o eventual acréscimo remuneratório para todos
os profissionais, mas para isso teria de haver exclusividade. Foi, se não
estamos em erro, no tempo de governo Sócrates que esta modalidade de trabalho
deixou de vigorar para novos profissionais e, mais tarde, com o ministro das Finanças
Centeno vir afirmar que seria impossível repô-la porque ficaria muito cara.
Conclusão: não há interesse e o Estatuto do SNS fica-se pelo ambíguo “regime de
dedicação plena”, que é voluntário.
A transformação do SNS em um “sistema” de
saúde, com intuito e gestão economicista, reforça o papel dos médicos já que se
trata de um modelo biomédico que coloca na doença, tratamento e
promoção/cronicidade da mesma, a sua tónica principal. Se a prioridade fosse a
prevenção da doença e a promoção do estado de saúde então o protagonismo
mudaria para outros grupos profissionais e os enfermeiros seriam um deles. E é
nesse sentido que a enfermagem deve lutar. Pela dignidade da profissão, pela
elevação da carreira de enfermagem, que deverá ser a mesma no público e no
privado, obrigatoriedade do regime de exclusividade, melhoria da grelha
salarial, não olvidando, como já aconteceu no passado, a reposição de todos os
enfermeiros, incluindo os CIT, na posição que corresponda ao seu tempo de
serviço.
No dia 12 de Maio, Dia Internacional do
Enfermeiros, dois sindicatos do sector convocaram greve em defesa das reivindicações
por “melhoria das nossas condições de trabalho e por uma aposentação mais cedo;
reconhecimento e valorização do nosso trabalho; dignificação dos Enfermeiros e
da Enfermagem”, para além de outras mais corporativas, negligenciando contudo a
defesa intransigente do SNS e da Saúde dos portugueses. Sem um amplo apoio
popular e ligação à luta dos trabalhadores em geral, esta luta irá morrer na
praia como tem acontecido até agora. E mais: daqui para a frente iremos
assistir a uma situação muito semelhante àquela que existia durante o final do
regime fascista e início do actual regime democrático, ninguém queria ir para a
enfermagem.
É sabido e reconhecido, nem será necessário
fazer inquéritos ou estudos sociológicos, que baixos salários, turnos nocturnos
mal pagos e extremamente extenuantes, em alguns serviços vão para lá das oito
horas, dez e doze horas – os sindicatos se “esqueceram” da luta operária pelo
horário das 8 horas diárias (8 horas de trabalho, 8 horas descanso, 8 horas de
recreação e cultura) que está na origem do 1º de Maio, Dia Internacional do
Trabalhador –, inexistência de perspectivas de futuro, porque não há carreira
digna e enriquecedora, para se saber que os jovens preferirão outras profissões
ou, então, o caminho da emigração. No entanto, é também mais do que sabido que
esta política conduzida por este governo, e por todos os que o antecederam, é
intencional, voluntária e há muito planeada – Bruxelas não lhe será alheia.
Espera-se que na “Marcha pelo Direito à Saúde”,
a realizar no próximo dia 20, as reivindicações sejam mais arrojadas e ousem
chamar os bois pelo nome. Os responsáveis pela calamidade que nos assola são
conhecidos, entre outros: Governo, Ordem dos Médicos, Big Pharma, Associação Portuguesa
da Hospitalização Privada e respectivo lóbi, Bruxelas.
A sociedade portuguesa é cada vez mais uma
sociedade doente, para regozijo de todos os que vivem à custa da doença e do
sofrimento alheio, a medicina da doença e Big Pharma, e os números não mentem: Portugal
é 3º país do mundo com maior consumo de benzodiazepinas e um dos que apresentam maior consumo de psicotrópicos; o aumento da pobreza, com o receio do
desemprego e as dívidas por pagar, constitui um fortíssimo factor para o
surgimento da doença mental; cerca de um quinto dos estudantes universitários
sofre de alguma perturbação mental; Portugal é dos
países europeus com menos anos de vida saudáveis. E os números não acabam…
É
contra este estado de coisas que a enfermagem e todos os trabalhadores da Saúde
terão de lutar.
Imagem in https://vilamaterna.com/o-que-e-violencia-obstetrica/
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