quarta-feira, 17 de maio de 2023

Violência Obstétrica, Enfermagem e Saúde dos Portugueses

 

As polémicas ou os casos e casinhos parecem ter dominado a opinião pública ultimamente em quase todos os domínios da nossa vida social e política. Agora é a polémica de a Ordem dos Médicos, que pensa que é ministério da Saúde, que nega ter participado na elaboração do documento da DGS que determina que os partos normais, ou seja, de baixo risco, sejam efectuados pelos enfermeiros especialistas da área; afirmação que é contrariada por Diogo Ayres Campos, coordenador da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, que defende que a DGS deve avançar com a orientação já aprovada. 

Como birra, o bastonário Carlos Cortes, mais inclinado para o PS, mantém no entanto a posição do seu antecessor, militante do PSD que fez do SNS uma arma de arremesso contra o governo e contra o próprio SNS, recusando a designação de um médico para a CVA (Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida), a entidade que será responsável por confirmar o cumprimento dos processos legais da eutanásia, mostrando mais uma vez que os interesses que defende são, ao cabo e ao resto, os interesses corporativos de uma classe profissional que se acha acima do resto da sociedade, como, aliás, terá denunciado o presidente da Mesa do Colégio da Especialidade dos Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica.

Mais do que um conflito de interesses entre dois grupos profissionais, trata-se aqui de quem está ou não, dentro do serviço público de saúde, disposto a tentar dar soluções aos principais problemas do SNS e da população utente do mesmo. Para quem não saiba, deve-se informar, com base em experiência pessoal de muitos anos, que as enormes listas de espera para consultas, cirurgias, exames complementares de diagnóstico, foi uma obra realizada pela classe médica. Especialmente por chefes de serviço e certos barões instalados no SNS que encontraram no boicote ao seu trabalho dentro do sector público uma forma de lavar os utentes para o privado onde aí já estariam disponíveis a prestar os serviços clínicos que no público se recusaram.

Esta foi uma maneira expedita para o enriquecimento fácil para alguns médicos, contando com a benevolência das administrações nomeadas pelo governo e por este último, que assim procedia à privatização da saúde de maneira discreta e que culminou na situação que ora todos conhecemos. A realização dos partos pela enfermagem, agora institucionalizada pela DGS, irá com certeza disponibilizar mais tempo para alguns médicos no sentido de poderem acumular o público com o privado. O que nem seria razão séria para o protesto da ordem dos médicos se isso não viesse a representar uma perda de protagonismo e uma prova que a sua actividade não é assim tão fundamental para o funcionamento regular das instituições públicas de saúde, bem pelo contrário.

Ainda continuando na área da saúde obstétrica e ginecológica constata-se que muitos problemas aí existentes são de responsabilidade de como alguns médicos tratam as utentes, sendo eles os principais responsáveis (claro que não serão todos) pelos episódios de violência que aí ocorrem. Em estudo, realizado recentemente, que avaliou a perceção das mulheres que passaram por trabalho de parto, os dados foram os seguintes:

«38,1% das parturientes sentiram “falta de apoio emocional durante o parto” (com variações percentuais entre 28,7% no Norte e 51,1% no Centro), 31,9% sentiram que “não foram tratadas com dignidade” (26,9% no Norte e 45,1% no Centro) e 23,3% sentiram que foram “vítimas de algum tipo de abuso físico, verbal ou emocional” (17,8% no Norte e, no pior cenário, 32,2% no Centro)”». A curiosidade é confirmar que na Região Centro a violência na saúde obstétrica é pior do que no resto do país.

Neste estudo, não se terá entrado em linha de conta com os palavrões e os gestos bruscos e arrogantes de alguns médicos que não se coíbem de ter em frente de utentes, familiares e restantes profissionais de saúde; situação que se agrava quando se trata de utentes de etnia cigana ou negra e pobre; aqui, alguns restantes profissionais seguem um pouco a conduta dos médicos, incluindo algumas enfermeiras. Este panorama, repetimos, não é predominante em todos os serviços, onde há médicos (homens) que só observam as utentes à frente da enfermeira, mas existe e, então, numa maternidade na Região Centro que bem conhecemos é quase uma constante, perante a indiferença da direcção clínica que parece preocupar-se mais com o tacho no privado.

Foi notícia na imprensa que a “falta de blocos operatórios obriga hospitais a gastar milhões nos privados”. Ora, se isso acontece não será bem pela falta de blocos operatórios ou de partos, mas mais pela sua má gestão. É frequente em alguns serviços de cirurgia do SNS marcarem-se intervenções só para a parte da manhã e em muitas vezes, especialmente quando os diretores são complacentes e coniventes, nem essas são todas realizadas porque algum senhor cirurgião ou anestesista tem outras intervenções marcadas após a hora do almoço… mas no privado. A “falta de blocos” é mais um meio para financiar os privados, a par das parcerias público privado (PPP) que irão entrar a toda a força com os novos hospitais que estão a ser construídos com os dinheiros públicos; o novo hospital de Sintra será o primeiro.

Os blocos poderiam ser utilizados com cirurgias programadas em pelo menos 16 horas, ou até nas 24 horas, com o eventual acréscimo remuneratório para todos os profissionais, mas para isso teria de haver exclusividade. Foi, se não estamos em erro, no tempo de governo Sócrates que esta modalidade de trabalho deixou de vigorar para novos profissionais e, mais tarde, com o ministro das Finanças Centeno vir afirmar que seria impossível repô-la porque ficaria muito cara. Conclusão: não há interesse e o Estatuto do SNS fica-se pelo ambíguo “regime de dedicação plena”, que é voluntário.

A transformação do SNS em um “sistema” de saúde, com intuito e gestão economicista, reforça o papel dos médicos já que se trata de um modelo biomédico que coloca na doença, tratamento e promoção/cronicidade da mesma, a sua tónica principal. Se a prioridade fosse a prevenção da doença e a promoção do estado de saúde então o protagonismo mudaria para outros grupos profissionais e os enfermeiros seriam um deles. E é nesse sentido que a enfermagem deve lutar. Pela dignidade da profissão, pela elevação da carreira de enfermagem, que deverá ser a mesma no público e no privado, obrigatoriedade do regime de exclusividade, melhoria da grelha salarial, não olvidando, como já aconteceu no passado, a reposição de todos os enfermeiros, incluindo os CIT, na posição que corresponda ao seu tempo de serviço.

No dia 12 de Maio, Dia Internacional do Enfermeiros, dois sindicatos do sector convocaram greve em defesa das reivindicações por “melhoria das nossas condições de trabalho e por uma aposentação mais cedo; reconhecimento e valorização do nosso trabalho; dignificação dos Enfermeiros e da Enfermagem”, para além de outras mais corporativas, negligenciando contudo a defesa intransigente do SNS e da Saúde dos portugueses. Sem um amplo apoio popular e ligação à luta dos trabalhadores em geral, esta luta irá morrer na praia como tem acontecido até agora. E mais: daqui para a frente iremos assistir a uma situação muito semelhante àquela que existia durante o final do regime fascista e início do actual regime democrático, ninguém queria ir para a enfermagem.

É sabido e reconhecido, nem será necessário fazer inquéritos ou estudos sociológicos, que baixos salários, turnos nocturnos mal pagos e extremamente extenuantes, em alguns serviços vão para lá das oito horas, dez e doze horas – os sindicatos se “esqueceram” da luta operária pelo horário das 8 horas diárias (8 horas de trabalho, 8 horas descanso, 8 horas de recreação e cultura) que está na origem do 1º de Maio, Dia Internacional do Trabalhador –, inexistência de perspectivas de futuro, porque não há carreira digna e enriquecedora, para se saber que os jovens preferirão outras profissões ou, então, o caminho da emigração. No entanto, é também mais do que sabido que esta política conduzida por este governo, e por todos os que o antecederam, é intencional, voluntária e há muito planeada – Bruxelas não lhe será alheia.

Espera-se que na “Marcha pelo Direito à Saúde”, a realizar no próximo dia 20, as reivindicações sejam mais arrojadas e ousem chamar os bois pelo nome. Os responsáveis pela calamidade que nos assola são conhecidos, entre outros: Governo, Ordem dos Médicos, Big Pharma, Associação Portuguesa da Hospitalização Privada e respectivo lóbi, Bruxelas.

A sociedade portuguesa é cada vez mais uma sociedade doente, para regozijo de todos os que vivem à custa da doença e do sofrimento alheio, a medicina da doença e Big Pharma, e os números não mentem: Portugal é 3º país do mundo com maior consumo de benzodiazepinas e um dos que apresentam maior consumo de psicotrópicos; o aumento da pobreza, com o receio do desemprego e as dívidas por pagar, constitui um fortíssimo factor para o surgimento da doença mental; cerca de um quinto dos estudantes universitários sofre de alguma perturbação mental; Portugal é dos países europeus com menos anos de vida saudáveis. E os números não acabam…

É contra este estado de coisas que a enfermagem e todos os trabalhadores da Saúde terão de lutar.

Imagem in https://vilamaterna.com/o-que-e-violencia-obstetrica/ 

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