domingo, 20 de novembro de 2022

A privatização da saúde e a greve no sector Estado

 

Os trabalhadores da Administração Pública, os enfermeiros e médicos em particular, estiveram em greve no passado dia 18, sexta-feira. Ou seja, outra greve à sexta-feira, dia que é aproveitado para prolongar o fim-de-semana. A adesão à greve terá sido entre os 60 e os 70%.

Em tempo de acelerado processo de privatização do SNS, com o seu esfrangalhamento em áreas a privatizar aos bocados, na primeira fase serão os centros de saúde e os serviços de obstetrícia e ginecologia, depois se verá, mas o resultado final será inevitavelmente um SNS assistencialista e completamente parasitado pelos sectores privados e sociais ligados à Igreja Católica, vêm de novo os mesmos do costume com as mesmas greves de fim-de-semana.

A liquidação, e não estamos a ser catastrofistas, do SNS está a ser feita em larga escala e em quase todas as áreas. Faltam mil médicos de família para os 1.300.000 utentes que há longo tempo esperam pelos serviços primários, nem aqueles estão a ser contratados a ritmo para suprir a falta em tempo útil. O que vem a calhar porque é uma boa razão para a privatização daqueles serviços. Começa-se com as cooperativas de médicos já reformados, que assim juntam à reforma mais uns cobres para continuarem a enriquecer, e até nem se percebe porque se reformam se estão ainda aptos para o trabalho! O objectivo é claro: a seguir às cooperativas virão os tubarões dos grupos económicos.

Um dos sintomas da destruição do SNS é o facto de Portugal ter tido mais dias com “excesso de mortes” em 2022 do que em 2021. É o resultado de piores cuidados e ausência, pura e simples, desses cuidados pelo SNS a pretexto do atendimento à Covid-19, bem como da ineficiência do sector privado, cujo objectivo principal é o lucro, e, contra o esperado, não aproveitou como devia a oportunidade da pandemia. A oportunidade vem agora. Para encobrir a realidade o ministro Manuel Pizarro, que parece uma cabeça de tartaruga, tem o desplante de vir alertar que “os fenómenos climáticos extremos” tiveram “um profundo efeito” nas causas de excesso de mortes. É preciso ter lata!

São os serviços de saúde públicos degradados e são os profissionais que ali trabalham a verem os seus salários e condições de trabalho fortemente depreciados pela política de privatização e pela inflação descontrolada. Os sindicatos falam em perda de poder de compra dos enfermeiros em 17% nos últimos doze anos, mas a desvalorização é bem maior e terá andado pelos 25%, por forças conjugada do congelamento da carreira, de não aumento anual e da inflação. Foram os enfermeiros e foram todos os trabalhadores do Estado em geral. Foram de igual modo, embora em proporção diversa, os trabalhadores do sector privado.

O governo do PSD/Passos Coelho cortava em termos nominais, o governo PS/António Costa corta em termos reais. Ambos cortam, então qual a razão para greves sazonais ou a conta gotas? No governo de direita havia greves gerais e grandes manifestações, por que não há agora? Será a paz social que contaminou todos os sindicatos, tanto da UGT como da CGTP?

O SEP, que costuma ser o sindicato da profissão mais aguerrido, por ter perdido protagonismo nos últimos anos, parece que agora sofre da mesma letargia dos restantes afectos à UGT, acorda agora talvez porque nos encontramos em vésperas da aprovação do Orçamento de Estado para 2023. Ora, com aumentos de 2% (110 euros mensais em média) é fácil fazer contas e chegar à conclusão de que para o ano os enfermeiros, à semelhança de todos os outros trabalhadores públicos, ficarão sem um mês de salário. Mas esta perda tem sido uma tradição com os governos do PS, este ano a perda será já de cerca de 80% de um salário.

A greve da enfermagem convocada pelo SEP irá manter-se por mais dois dias, mas em vésperas da discussão e aprovação do OE-2023, e o leitmotiv parece ter sido o não se ter chegado a acordo quanto à contagem dos pontos para a progressão. Ora, esta contagem tem sido sabotada porque se presta a tal, tendo logo de início colocado de fora parte do tempo em que a carreira esteve congelada, tendo sido esse mesmo o objectivo: não contar parte do tempo. Foi uma manobra engenhosa do governo PS para não contar todo o tempo aos enfermeiros à semelhança do que fizera com os professores. E os sindicatos foram no engodo, agora andam a correr atrás do prejuízo e só se podem queixar deles próprios.

Aquando da progressão em 2019 o aumento salarial deveria ter sido de pelos menos uns 400 euros mensais em média, tanto para os CIT como para CTFP, e agora deveria ser outro tanto, coisa que não irá acontecer. E ficamos em dúvida se estes aumentos, caso tivessem acontecido, teriam reposto todo o poder de compra perdido desde 2010. O mesmo é válido para todos os trabalhadores do sector público. O governo já veio lamentar que o descongelamento d carreira dos enfermeiros irá “custar” 72 milhões este ano, partindo do princípio, o que não será verdade (mais outro engano), de que todos os enfermeiros terão aumentos de 200 a 400 euros, ou como se esse “custo” não fosse um investimento.

Os profissionais de saúde queixam-se de que sofreram só este ano, que ainda não acabou, cerca de 1.300 casos de violência, esperamos que percebam que essa violência mais não é que a expressão do descontentamento de uma população utente que cada vez mais se revolta contra um serviço de saúde, que tem estado a ser degradado de forma intencional e continuada para permitir a entrada dos privados no negócio, justificando-a com a essa depreciação e simultânea insatisfação. A luta contra esta privatização terá de ser o centro de gravidade de toda a luta dos enfermeiros, o que não tem acontecido; estes, e graças aos seus sindicatos, continuam a olhar para o umbigo. E assim não irão longe.

A adesão à greve no dia 18 não terá andado bem pelas percentagens anunciadas. Terá havido serviços em que os enfermeiros não aderiram à greve por oportunismo e ainda por cima impediram ou tentaram impedir a greve por parte de assistentes operacionais. Houve serviços, como aconteceu no CHUC, que obrigaram os assistentes operacionais a realizar tarefas que não são da sua competência ou redundantes, e, pior ainda, a mando das chefias, chegaram a chamar assistentes operacionais que estavam de folga para virem trabalhar em dia greve, o que é uma ilegalidade, com a promessa de serem pagos em horas extraordinárias. Aconteceu e os sindicatos, nomeadamente SEP e STFPSC, sabem disso e estaremos à espera para ver qual vai ser a reacção. Esperamos sentados.

Os sindicatos parecem não ter percebido, ou não querem perceber, que estas lutas se estiverem desligadas da luta mais geral dos trabalhadores e dos cidadãos comuns, quer por um SNS universal, geral e gratuito para quem trabalha, quer por melhores salários e condições de via, em geral, estão condenadas ao fracasso, daí estes problemas se terem eternizado e sem solução à vista. Daqui a dez anos ainda veremos os mesmos sindicalistas, alguns dos quais se manterão nos cargos depois da reforma, a falarem dos mesmíssimos problemas e com o mesmo tipo de retórica. O problema é que parte dos trabalhadores vai atrás do folclore sem também nada terem aprendido. Estamos para ver manifestação em Portugal algo parecida com a gigantesca manifestação ocorrida no passado dia 13, faz hoje exactamente uma semana, em Madrid, que juntou mais de 600 mil pessoas, entre técnicos de saúde, no activo e na reforma, e de cidadãos que se solidarizaram, incluindo figuras famosas do mundo das artes e do espectáculo, CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DO SNS! Esperamos também sentados.

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