Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3
milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo
por Pedro Almeida Vieira (artigo
escrito em Abril, mas actualíssimo)
Ana Paula Martins, a nova ministra da
Saúde, teve um papel determinante numa campanha solidária durante a pandemia em
parceria com a Ordem dos Médicos e o seu bastonário Miguel Guimarães, actual
deputado do PSD, que angariou mais de 1,4 milhões de euros; destes cerca de 1,3
milhões vieram de farmacêuticas. Mas apesar das boas intenções, as
irregularidades e ilegalidades marcaram a gestão dos dinheiros. Em vez de uma
conta institucional, foi criada uma conta pessoal, tendo Ana Paula Martins como
um dos três co-titulares, e não foi pago um imposto de selo devido de mais de
125 mil euros. Além disso, embora os pagamentos de géneros se realizassem
através dessa conta pessoal, as facturas foram emitidas em nome da Ordem dos
Médicos, podendo dar azo a um ‘saco azul’. Para as farmacêuticas terem
benefícios fiscais, também foram promovidas centenas de falsas declarações,
incluindo até de hospitais e da Associação Nacional de Farmácias e da Liga dos
Bombeiros. Esta é uma investigação do PÁGINA UM iniciada ainda em 2022, e ainda
não concluída; tal como não concluída parece estar uma auditoria externa
prometida há dois anos.
A nova ministra da Saúde vai entrar em funções
com um ‘elefante na sala’ que muitos tentam negar a existência, apesar do seu
volume. Durante a pandemia, em colaboração com a Ordem dos Médicos, Ana Paula
Martins foi, enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, co-gestora de uma
campanha de solidariedade que amealhou, entre outros pequenos donativos, mais
de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêuticas, mas a contrário daquilo que
seria expectável, a entrada e saída de dinheiro vivo foi feita através de uma
conta por si titulada, em nome pessoal, em parceria com Miguel Guimarães –
antigo bastonário dos médicos e actual deputado do PSD – e Eurico Castro Alves,
ex-secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho.
Apesar da suposta bondade desta campanha –
atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a
instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as
irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM – que investiga a
gestão do fundo “Todos por uma causa” desde 2022, estando ainda a aguardar-se o
cumprimento de uma
sentença do Tribunal Administrativo por parte da Ordem dos Médicos –
incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações
para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.
Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram
protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades
(D.R./Ordem dos Médicos)
Criada logo no início da pandemia em Portugal,
a campanha “Todos por
Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020
entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava
toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa
primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie”
de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares,
equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos
profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de
saúde”.
Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e
também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que
alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –,
as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo
solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo
PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.
E foi aqui que começaram as irregularidades.
Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou
apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido
que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de
Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel
Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.
A partir daqui as irregularidades surgiram em
catadupa. Sendo que a conta não era institucional – mas sim de três pessoas,
independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério
da Administração Interna para a angariação de fundo omite o facto de que o NIB
em causa não era das entidades promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos
Farmacêuticas. Aliás, são indicadas no final do pedido duas contas que nunca
foram usadas na angariação. Ou seja, os donativos em vez de segurem para uma conta
institucional das entidades anunciadas como promotoras destinaram-se afinal
para uma conta de três pessoas.
Por outro lado, o pedido de autorização apenas
foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos se iniciou em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três
meses antes. À data do pedido de autorização ao Ministério da Administração
Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico
Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser
precedida da autorização ministerial.
Por outro lado, nessas circunstâncias jamais
se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício na obtenção de
donativos, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos
para uma conta de três pessoas. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel
Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pago solidariamente o imposto de
selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros.
Pedido de autorização para angariação de
donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e
Ordem dos Farmacêuticos.
Ora, face aos montantes das diversas
transferências da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma),
todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus
parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o
recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10
euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM,
nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para
esse cumprimento fiscal.
Existiram pelo menos mais 13 transferências
bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem
pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros),
Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas
Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial
Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI
(1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).
Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA
UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e
Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam
ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.
Confirmação de que a conta solidária tinha
como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou
seja, não era uma conta institucional.
Além desta grave falha fiscal –
independentemente dos objectivos da da campanha –, os três titulares da conta
solidária deveriam ter declarado no Portal da
Transparência e Publicidade do Infarmed, por serem profissionais de saúde,
todos os donativos de farmacêuticas, incluindo da Apifarma, que ultrapassaram
mais de 1,3 milhões de euros. Ana Paula Martins – que, depois de abandonar a
liderança da Ordem dos Farmacêuticos, ainda passou vários meses na Gilead –,
Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves nunca fizeram essa declaração
obrigatória. Saliente-se que Ana Paula Martins terá a partir de agora a tutela
do Infarmed.
Além destas irregularidades e incumprimentos
fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha
e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição,
designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem
doados.
Na consulta à documentação contabilística da
campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor
total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos
(pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento
e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer
pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins,
Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos
Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem
dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.
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