sábado, 6 de novembro de 2021

Ainda o Orçamento do SNS: A saúde de que necessitamos

 

por Manuel Antunes 

 Os leitores perdoar-me-ão voltar a este tema, o mesmo do meu último Comentário, no mês passado. É que, efetivamente, ainda havia pouco conhecimento sobre o ‘bolo’ para a Saúde no Orçamento do Estado (OE) para 2022. E, naturalmente, estávamos muito longe de adivinhar o chumbo na Assembleia da República, que nos lançou no caos político que estamos a viver.

Ainda assim, eu quereria discutir três pontos que me parecem essenciais no que conheço do documento, e confesso que apenas sei aquilo que foi vinculado na comunicação social: O valor global atribuído à saúde, a contratação de pessoal e a exclusividade dos médicos. Uso aqui o termo exclusividade, que é o mais conhecido do público, mas o termo usado foi o de “dedicação plena”, que eu prefiro e já vinha utilizando há pelo menos uma dezena de anos.

O OE para 2022 prevê (previa) um aumento de 703 milhões de euros face à verba estimada para 2021, isto é, um aumento de cerca de 6%. Este valor inclui um acréscimo de mais de 207,9 ME para despesas com pessoal. Por outro lado, prevê-se investir 1,1 mil milhões de euros em compras de medicamentos e dispositivos médicos no próximo ano, o que representa uma poupança até 5% face a 2021. Não entendo para que serve ter mais pessoal e menos ‘material’. Naturalmente, ninguém (nem eu) rejeita um aumento de 6% para a saúde, que se transformaria em quase mais mil milhões de euros no orçamento seguinte, eventualmente mil e quinhentos milhões no outro a seguir, e por aí fora. Alguém tem de me explicar, contudo, como é que esta taxa de crescimento se encaixa num aumento do PIB de 1,5 ou 2%, que é a nossa média (os 4 ou 5% previstos para este ano e para o próximo são apenas a recuperação das perdas do ano passado). Com as duas curvas a divergirem deste modo, algures no futuro próximo algo vai rebentar.

No comentário do mês passado eu dizia que “pôr mais dinheiro num sistema onde palavra de ordem é o desperdício, é contribuir para aumentar o desperdício”. Mais importante que pôr lá mais dinheiro é saber como é que ele se vai gastar (bem). Tenho para mim que isso só se consegue com uma profunda reforma da administração, especialmente a nível dos hospitais e outros estabelecimentos de saúde. A maioria deles não tem ‘know-how’ de gestão para atingir este desiderato. Isso está implicitamente reconhecido na anunciada criação de uma nova “Direção Executiva” para coordenar a assistência de saúde. Esclareceu a ministra que “aquilo que se pretende é que a direção executiva tenha funções mais operacionais”. Mas isso não é já uma função da já existente Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS)? Há duas semanas atrás, a ministra da Saúde declarou publicamente que “temos um problema de organização” no SNS. Isto diz tudo!

E é aqui que surge o segundo ponto que eu queria discutir. O novo estatuto do SNS, em discussão, refere que, ”face à dinâmica específica e relevância social dos estabelecimentos de saúde, ser-lhes-á atribuída autonomia para procederem à substituição de profissionais de saúde. Para além dos hospitais, ficam abrangidos por este regime as entidades do setor público administrativo”. Parece-me bem. Sempre fui a favor de um aumento da autonomia dos setores intermédios da gestão, mas isto só pode funcionar se o sistema instituído tiver capacidade para tal. E não tem! Insisto, antes de adotar este tipo de medidas é necessário reformular profundamente a gestão. Se não, não haverá nunca dinheiro que chegue. Infelizmente, os melhores administradores dos SNS foram atraídos pelo setor privado, onde encontram muito melhor organização e, obviamente, remuneração.

Finalmente, a questão da ‘dedicação plena’. É tempo dela, mas esta acaba por ser definida como “não obrigatória a não ser para novos (?) médicos” e para “os médicos em funções de direção de serviço e departamento que venham a ser nomeados para essa função”. “Para os restantes, é facultativo e depende da aceitação de uma carta de compromisso assistencial”, disse a Ministra numa entrevista ao Telejornal, destacando que o objetivo é criar “incentivos à produtividade”. Há mais de 30 anos que tenho vindo a defender um regime de dedicação exclusiva (plena) dos médicos, mas posta deste modo, estamos a brincar. Será que têm uma pequena ideia do valor que esses incentivos têm de atingir, para se obterem os resultados pretendidos? Esperemos pelas posições a assumir pelas organizações de classe. Aliás, viria a ser esclarecido uns dias depois que “médicos em dedicação plena no SNS só não podem exercer cargos de chefia no privado”.

Definitivamente, continuamos no ‘faz de conta’….

Retirado d'asbeiras

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