quinta-feira, 21 de maio de 2020

Parasitas


"A PGR confirma a abertura de investigação ao caso da certificação e venda de três milhões de máscaras de proteção individual compradas pelo Ministério da Saúde à empresa Quilaban (de João Cordeiro) no âmbito de um contrato por ajuste direto, no valor de cerca de 8,5 milhões de euros, assinado em 07 de abril, durante o estado de emergência devido à pandemia." (da imprensa). E imagem no facebook

Ou como o Serviço Nacional de Saúde em Espanha, à semelhança do que se passa em Portugal, é parasitado pelo sector privado do negócio da saúde:
por Ángeles Maestro

«Efectivamente, a degradação do sistema de saúde tem uma longa história que não resultou só do descuido dos governos mas, muito pelo contrário, de decisões políticas activas e de longo alcance destinadas a enfraquecer a saúde pública e cuja importância foi sistematicamente ocultada.

Para poder entender esse processo é importante esclarecer alguns conceitos. A saúde pública e a saúde privada não são compartimentos estanques, e muito menos complementares. Na realidade estão tão intimamente relacionados que são um binómio inseparável. A relação entre ambas é muito semelhante à que se estabelece entre hospedeiro e parasita, certamente fundamental no estudo das doenças infecciosas.
O parasitismo, recordando a biologia, é um tipo de simbiose em que o parasita depende do hospedeiro e vive dele depauperando-o, sem chegar a matá-lo. O parasita obtém benefícios e o hospedeiro danos.

Ectoparasitas: as seguradoras privadas e os contratos
A evidente analogia para quem analise o assunto com critério independente, ou seja, que não tenha interesses vinculados ao capital privado, tornou-se um axioma, inclusivamente para o PSOE dos últimos anos do franquismo. Por exemplo, no seu programa político afirmava-se que era impossível desenvolver uma saúde pública de qualidade sem nacionalizar a indústria farmacêutica.

Poucos anos depois, em 1982, após a vitória do PSOE por maioria absoluta, essa afirmação ver-se-ia confirmada exactamente ao contrário. O dirigente mais destacado do PSOE em questões de saúde, Ciriaco de Vicente, um homem qualificado e com abordagens de esquerda, não foi nomeado ministro como era esperado. A poderosa indústria farmacêutica fez saber a Felipe González que não confiava em De Vicente. Em seu lugar foi nomeado Ministro da Saúde Ernest Lluch, um homem muito próximo da Farmaindustria, a associação empresarial da indústria farmacêutica estabelecida em Espanha.

Nessas condições, não surpreende que a Lei Geral de Saúde tenha eliminado artigos muito importantes que apareciam nos primeiros rascunhos, como a submissão do Medicamento ao planeamento geral do Sistema Nacional de Saúde ou a proibição expressa de acordos com entidades privadas.

Actualmente, quase 12% da despesa estatal em saúde pública vai para acordos, uma proporção em constante crescimento e muito maior em comunidades autónomas como Catalunha e Madrid.

O aumento exponencial da contratação de saúde pública com empresas privadas desenvolveu-se em sentido contrário do investimento e do desenvolvimento de serviços públicos. Com o argumento de reduzir as listas de espera foi acordada massivamente a realização de intervenções cirúrgicas de média ou baixa complexidade, muito rentáveis, em clínicas privadas que, em muitas ocasiões, estão muito abaixo dos padrões de qualidade exigíveis e às quais é permitido seleccionar pacientes. É evidente que para a saúde pública ficam todas as intervenções dispendiosas e as pessoas com patologias múltiplas ou de idade avançada.

As enormes listas de espera - especialmente a espera pelo diagnóstico - como expressão da degradação da saúde pública produziram outra consequência enormemente lucrativa: a escalada meteórica das apólices de seguro privadas. Os números de 2019 eram os mais elevados da história: 10 milhões de pessoas. O maior escândalo é o grande número de instituições públicas que pagam, com dinheiro público, apólices privadas aos seus membros e parentes. A aplicação desde 2016 de deduções fiscais significativas aplicáveis ​​a trabalhadores e empresas independentes e actualmente em vigor contribuiu significativamente para isso. É a raposa guardando as galinhas.

Voltando ao símile biológico, as empresas seguradoras privadas, cuja boa saúde depende da deterioração da saúde pública com o apoio inestimável - ou não - de decisões de várias cores políticas, seriam ectoparasitas (como os carrapatos ou os piolhos). Estes ectoparasitas desenvolvem-se no exterior do hospedeiro, a saúde pública, tal como as empresas que prestam serviços de saúde com as suas próprias instalações e recursos, embora já tenhamos visto a importante quinta coluna com que contam no interior no caso que nos ocupa.

E em saúde não se trata fundamentalmente de que o dinheiro público, saído dos nossos bolsos, vá enriquecer uns quantos, mas sim de que esse suculento negócio se faz à custa de vidas, de mortes prematuras e perfeitamente evitáveis. Nesse sentido, não se pode esquecer a dramática situação vivida em hospitais públicos obrigados a não atender pacientes com mais de 70 anos devido à falta de recursos, enquanto os serviços de saúde privados exibiam instalações de cuidados intensivos disponíveis… a preços de mercado. Nem o governo do estado, nem qualquer governo autónomo levantou um dedo para intervir em todos os recursos necessários, apesar de o primeiro Decreto de Estado de Alarme prever essa possibilidade.

Como bons parasitas, aproveitam da fraqueza do oponente. Em todos os meios de comunicação testemunhamos o escárnio de uma intensificação da publicidade de seguradoras (Sanitas, Adeslas, DKV, etc.) que oferecem atendimento a idosos doentes das classes sociais que podem arcar com essa despesa.

Endoparasitas: gestão privada com financiamento público.
A história dos endoparasitas, da penetração do capital privado na saúde pública é mais complexa. É uma guerra de trincheiras. É a consequência da crise geral do capitalismo que vê seus lucros caírem em sectores produtivos e se refugia no paraíso dourado dos serviços públicos.

O caminho da privatização começou nos anos 90, com a eufemisticamente denominada externalização de partes essenciais de um hospital como é o caso dos serviços de limpeza, lavandaria, cozinha ou segurança, e não cessou de se expandir a laboratórios, radio-diagnóstico, cuidadores, etc.

O tiro de partida para a entrada maciça de capital privado nos cuidados de saúde foi dado pela aprovação no Congresso dos Deputados da Lei 15/97 de novas formas de gestão, que contou com os votos do PP (governando em minoria), do PSOE, PNV, CiU e Coligação Canária. Pode imaginar-se maior consenso político? Pois ainda houve mais. No dia seguinte à votação, a Federação da Saúde de C.C.O.O. expressou a sua satisfação por um acordo tão amplo em torno de uma Lei fundamental para “modernizar” a saúde pública.

Pode o capital sonhar com algo melhor do que contar financiamento público, ter a clientela assegurada, poder impor condições de precariedade laboral, fazer depender os recursos oferecidos da obtenção de benefícios e da selecção de pacientes rentáveis?

A esse privilégio escandaloso, que supunha multiplicar por seis o investimento realizado durante o período de concessão, apresentaram-se as construtoras arruinadas após o estouro da bolha imobiliária, na grande maioria ligadas à rede Gurtel, multinacionais da saúde privada e fundos de capital de risco.

Os dados acumulados que apresento abaixo explicam o horror experimentado nos hospitais durante essa epidemia. Na saúde pública de Madrid tem havido desde 2008 uma diminuição brutal de pessoal, acelerada com a criação de onze novos hospitais de gestão privada e financiamento público. Perderam-se mais de 7.000 trabalhadores, incluindo 3.000 enfermeiros com diploma de bacharel ou licenciatura, e permanecem fechadas cerca de 3.000 camas.

A análise deste processo, complexo, mas que é indispensável conhecer, vai além dos objectivos deste artigo e já foi realizada, embora essa análise rigorosa não tenha transcendido para os grandes meios de comunicação. Este silêncio não é surpreendente se considerarmos que esta informação desmascara interesses políticos e empresariais que, por sua vez, contribuem decisivamente para o financiamento dessas mesmas empresas de comunicação.
(...)

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