"Stop and Search" - Banksy
«A
declaração de calamidade não suspende, muito menos suprime,
direitos laborais, sociais e políticos. Nem, nunca, estes
direitos prejudicaram o combate à covid-19. Prejudicariam, isso sim,
o curso da propagação da pandemia do medo, em que os principais
responsáveis políticos se empenharam, arrastando, com pouca
ponderação, 1,3 milhões de trabalhadores para o lay-off, 170 mil
independentes para a penúria e 55 mil para a sopa dos pobres.
O
ambiente em que vivemos desde 3 de Maio é manifestamente
inconstitucional, porque pretende suspender direitos fundamentais por
uma decisão unilateral do Governo. Com efeito, a situação de
calamidade colhe o seu suporte legal numa lei ordinária da AR (Lei
n.º 27/2006), que não permite limitar o exercício desses direitos
senão de forma temporária determinada e apenas em zonas claramente
definidas do território nacional (Art.º 21º, nº 1, b) da citada
lei).
Mas
uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha
da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em
silêncio a limitação administrativa dos seus direitos. Vive-se,
assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e
pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do
espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de
religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a
neurose colectiva. A retórica fascizante que a serve permitiu a
António Costa armar-se em intérprete de um certo interesse
superior, “diga a Constituição o que diga” e a um comandante da
GNR recordar-nos o “dever de cada um ser o polícia de si próprio.”
E, apesar de os cientistas do mainstream terem concluído que a quase
totalidade das contaminações ocorreu em espaços fechados
(habitações, lares e instituições de saúde), prepara-se agora o
reforço das contínuas operações da PSP, da GNR e da Polícia
Marítima, chamando “fuzileiros e artilheiros” (ministro do
Ambiente dixit) para controlarem os perigosos areais. As medidas em
estudo, refere a imprensa, admitem cercas, torniquetes, sensores,
drones, vigilância privada, marcas na areia para espetar as
sombrinhas e cordas para delimitar a separação entre banhistas. Por
este caminho, ainda vamos ver um ajuste directo para amestrar
carapaus, que vigiarão o distanciamento dentro de água.
À
salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária,
opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus,
coexistindo com ele por via da imunidade adquirida. Trata-se da
dicotomia entre um risco de infecção, probabilisticamente baixo, e
uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e
social, sem precedentes.
A
casa dos professores e a casa dos alunos cederam a sua natureza
privada a uma certa lógica totalitária, que o fetichismo do ensino
à distância impôs. O impropriamente chamado ensino à distância
invadiu a vida privada e familiar dos docentes, misturando
perigosamente vida profissional e vida pessoal. Sem resistência,
inebriada por essa estranha união nacional contra a covid-19, uma
parte significativa dos professores alistou-se em jornadas de
trabalho sem limite e disponibilizou-se para trabalhar a todo o
momento, respondendo a todas as solicitações. É prudente
reflectir sobre o que está a acontecer e separar águas.
Uma
coisa é uma metodologia sólida, coerente e tecnicamente complexa
de ensino a distância (maioritariamente destinado a populações
adultas e definitivamente vedado a algumas áreas temáticas), outra
coisa é uma solução improvisada e precária (para entreter
crianças e jovens afastados da escola). Não discernir sobre a
diferença entre estes conceitos pode conduzir a entusiasmos para
“normalizar”, no futuro, o que agora é meramente instrumental,
pobre e casuístico.
Custa-me
ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por
relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa
prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um
colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de
computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não
entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores
e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram,
certamente, que uma aula tem múltiplos papeis sociais, que nenhuma
máquina substitui.
In
"Público" de 13.5.20
e
facebook
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