«Nunca
pensei escrever estas palavras, mas a verdade é que os
acontecimentos dos últimos dias me forçaram a ceder à evidência.
Presumo que, tal como milhares de portugueses, neguei até onde me
foi possível. Ao longo dos últimos meses fui disfarçando o
incómodo, fui fingindo que não via, fui ignorando a verborreia…
Só não assobiei para o lado porque nunca aprendi a fazê-lo.
Acontece que agora, depois do telefonema do Presidente da República
ao meu colega Luís, não posso continuar a fugir à mais clara das
verdades: a principal figura do Estado português sofre da síndrome
do maior bolo-rei do mundo.
Numa
escala numérica de provincianismo, telefonar ao enfermeiro português
que cuidou de Boris Johnson é, pelo menos, um sólido e brilhante
nove. A sério, qual é a diferença entre este telefonema do
Presidente e o português que infla o peito para dizer que “eles
até podem ter um ordenado mínimo três vezes superior ao nosso, mas
nós é que organizámos a feijoada na ponte”? Pois… Muita
vergonha alheia, não é?
E
sabem o que é ainda mais ridículo nisto tudo? É que aposto a minha
mão direita em como o meu colega dispensava bem este telefonema.
Porque o que o Presidente da República parece não compreender é
que o Luís se limitou a fazer o mesmo que milhares de enfermeiros,
médicos, assistentes operacionais e técnicos de diagnóstico e
terapêutica fazem todos os dias: cuidar, com profissionalismo e
competência, de todos aqueles que necessitam. O Luís cuidou de
Boris Johnson como teria cuidado de um idoso abandonado num lar, de
uma prostituta encontrada na rua ou de um indigente. Porque para o
Luís, e para todos os Luíses que se dedicam a cuidar dos outros,
todas as vidas valem o mesmo. Não há doentes de primeira ou doentes
de segunda.
O Luís
passou o turno à cabeceira de Boris Johnson não porque era o
primeiro-ministro inglês deitado numa cama, mas porque o Luís é,
tal como eu e milhares de outros colegas, enfermeiro numa unidade de
cuidados intensivos. E isso é o que nós fazemos. Estamos ao lado
dos doentes, numa monitorização apertada, 24 horas por dia. Desde
sempre. Desde muito antes da pandemia. E à cabeceira dos doentes
continuaremos quando tudo isto acabar. Era importante que algum dos
assessores de Belém informasse o nosso Presidente deste facto. Se
calhar, assim, evitavam-se estas demonstrações de provincianismo
bacoco.
E,
telefonemas à parte, o Luís continua longe de casa, emigrado. É
mais um dos 18 mil enfermeiros que deixaram Portugal nos últimos
anos. É mais um dos que decidiu virar as costas às propostas
milionárias dos 6,42 euros por hora que, no final do mês, depois de
140 horas de trabalho, rendem um brilhante salário de 899 euros.
Talvez fosse com isto que o nosso Presidente da República se devesse
mostrar preocupado, talvez esta fosse a melhor forma de elogiar o
trabalho do Luís. Aposto que ele ficava bem mais agradecido do que
com o telefonema que só mostra que, às vezes, somos mesmo um povo
pequenino. Mesmo que tenhamos conseguido fazer o maior bolo-rei do
mundo. Têm dúvidas? É consultar o Guinness.»
Carmen
Garcia
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