A
bastonária veio há pouco tempo lamentar o aumento da emigração
dos enfermeiros, que atingiu este ano os níveis do tempo da troika,
e atribuir o facto à desilusão provocada pela dita “nova
carreira” - pode limpar à vontade as mãos à parede! É mais do
que evidente que esta carreira, que deixou mais de metade dos
enfermeiros de fora e provocou um sem número de injustiças teve a
mão da Ordem, que esteve o tempo que a precedeu a funcionar como
organização sindical.
Passados
10 anos após a entrada em vigor de uma carreira que na altura foi
apresentada como a melhor do mundo, já que acabava com as categorias
supérfluas de “enfermeiro-supervisor” e até de “chefe” e
rearrumava os enfermeiros especialistas em “enfermeiro principal”,
cujo salário médio seria o dobro do “enfermeiro especialista”,
e - objectivo supremo de toda a movimentação, desde greves,
manifestações, as maiores realizadas até então, juntando os
sindicatos das duas centrais sindicais - instituía o grau de
licenciatura.
Só
que havia uma "pequena" questão: os “doutores” continuavam a
auferir o mesmo salário que recebiam antes do reconhecimento da
licenciatura. Outros problemas surgiram, que os sindicatos não
conseguiram ou não quiseram ver: os especialistas desapareceram,
porque concurso para enfermeiro principal nunca abriu; os salários
estagnaram porque, entre outras coisas, a carreira e as progressões
na função pública congelaram. O pretexto foi a crise e a
subsequente intervenção da troika.
Com a
substituição do PSD/CDS pelo PS no governo, os sindicatos em vez de
reactivarem a carreira em hibernação forçada, vieram com a
proposta de uma nova. O SEP inclusivamente fez um Congresso onde se
apresentou a necessidade de “nova carreira”, mas sem conseguir
explicar a caducidade ou a desactualização da carreira ainda em vigor, pelo
menos no papel.
Veio,
finalmente, a “nova carreira” - Decreto-Lei
nº 71/2019, de 27 de Maio – que para além de não resolver as
questões antigas ainda acrescentou mais algumas, e não só as já
conhecidas “injustiças relativas”. Os sindicatos de pronto
manifestaram o seu desagrado, genuíno ou fingido, mas manifestaram-se:
O
SEP: “a carreira, agora publicada, constitui um pesado revés nas
legítimas e justas expectativas e aspirações dos enfermeiros em
possuírem uma carreira que valorize e dignifique o seu
desenvolvimento profissional e salarial”... nomeadamente, “a
imposição de uma quota de 25% (propusemos que fosse de 50%) de
postos de trabalho para a categoria de Enfermeiro Especialista” ou
“a
imposição das regras de transição que obriga a que cada
enfermeiro transite para as categorias de especialista ou de gestor
com o mesmo salário.”
O SINDEPOR:
“repudia a publicação do Decreto-Lei n.º 71/2019, de 28 de Maio,
que não passa de mais um ato a juntar a uma longa lista de completo
desrespeito pela Enfermagem em Portugal. Consideramos
tanto a forma como o conteúdo de todo o processo denominado de
“negocial” uma farsa e um embuste uma vez que se concretizou a
intenção demonstrada pelo Ministério da Saúde em 17 de janeiro de
2019, ignorando claramente e deliberadamente as pretensões dos
Enfermeiros apresentadas pelos seus sindicatos”.
Os
sindicatos prometeram luta. O SINDEPOR convocou greve para os dias 2
a 5 de Julho, que decorreu com elevada percentagem de adesão,
provando que os enfermeiros na sua maioria estão revoltados com a
situação, e o SEP ameaçou com “Carreira,
Progressões e Especialistas: esta luta não pára” (06 de Junho) e
“Estamos
a intervir junto dos Grupos Parlamentares no sentido de suscitarem a
“apreciação parlamentar”... Em breve avançamos com uma
“Petição Pública”, a remeter à Assembleia da República,
no sentido de serem debatidas
em plenário as soluções de Carreira que são justas perante os
enfermeiros. É a via legalista, dando na prática como inútil a
luta mais dura que tanto têm apregoado.
Passado
todo este tempo, a apreciação a fazer é fácil:
1-
ao contrário do que afirma o SEP, há valorização para algumas
categorias: o especialista passa ganhar em média mais 50 euros, para
além do suplemento, os ditos “especializados” não tiveram que
fazer concurso público, ao contrário dos especialistas na velha
carreira (DL
437/1991); os chefes e supervisores passam a ganhar em média mais
300 euros, que são indubitavelmente os mais beneficiados, e
duplamente: não desaparecem, recebem o maior aumento pecuniário e
vêem o seu poder discricionário aumentado;
2- nem
todos os especialistas foram recolocados na categoria, ou porque
ficaram de fora na selecção feita pelos chefes - não houve
critérios objectivos, por exemplo, nota ou/e tempo de especialidade
ou de serviço – ou porque não se podia ultrapassar a quota dos
25%. Não se percebe que os sindicatos tenham reivindicado os 50%,
sabendo que a intenção do governo era só os 25%, e não os 100%,
que é o mais lógico: todos os enfermeiros devem ser especialistas;
3- a
imposição de critério de transição para a categoria de
enfermeiro especialista de “receberem o suplemento remuneratório”
e a exclusão de enfermeiros já especialistas nos termos do DL
437/1991 mostra a intervenção da Ordem dos Enfermeiros, que teve em
todo o processo um protagonismo que não lhe cabe legalmente e que
foi ditado por obediência a agenda política do partido da
bastonária – os sindicatos foram relegadas decididamente para
segunda posição, com alguns deles, os que nem sempre estiveram com
as greves, a desempenhar voluntariamente esse papel para não colocar
em causa o governo;
4- o
governo sempre manifestou, desde o início, uma explicita má-fé,
que foi acompanhada pelas administrações da maior parte das
instituições do SNS: pela não contabilização correcta e atempada
dos pontos para progressão remuneratória; pela aprovação do
Decreto-Lei nº27 de Abril de 2018, com retroactividade a partir de
Janeiro, que deveria sair em 2017 a fim de os enfermeiros puderem
actualizar a sua inscrição na Ordem; situação esta que foi
exigida só em Agosto pelas administrações (CHUC, por exemplo)
permitindo que estas beneficiassem de uma irregularidade pela qual
também eram responsáveis; a não divulgação das listas de
enfermeiros especialistas elaboradas pelas chefias em 2017, isto é,
antes da publicação do Decreto-Lei, mas só depois, já com o facto
consumado (O CHUC só agora publicou as listas dos enfermeiros
consoante a data de inscrição ou actualização na Ordem, coisa que
deveria ter feito em 2017!);
5- é
notório não só a má-fé como todo o desprezo votado pelo governo
aos sindicatos durante todo o processo (mais visível na não
correcção das já referidas “injustiças relativas”), bem como
o ódio dispensado a toda a classe dos enfermeiros. Foi o ataque
pérfido contra as suas lutas, principalmente as greves cirúrgicas -
atitude completamente diferente quando se trata de greves feitas
pelos médicos ou pelos juízes. Foi o decretar da requisição
civil, medida que faz inveja a qualquer governo de direita ou de
extrema-direita. Esta política de ataque e de desconsideração de
toda uma classe, um dos pilares fundamentais do SNS, só foi possível
porque houve sindicatos, seguindo agenda partidária particular, que
andaram, e continuam a andar, com o o governo do PS e do Costa ao
colo.
O
Costa, em entrevista recente dada ao Expresso, foi claro: “o país
não pode estar refém das carreiras especiais da função pública”.
E o PS, tempo antes, já dera a conhecer o seu programa eleitoral
para as próximas eleições de 6 de Outubro, não deixando margem
para dúvidas em relação
às carreiras da administração pública, já que estas “custam
todos os anos 200 milhões de euros e, deste valor, quase dois terços
é gasto em carreiras especiais em que o tempo conta no processo de
progressão” e “uma realidade que cobre cerca de um terço dos
trabalhadores do Estado”, então há que desfazer o “desequilíbrio”
e “limitar a política salarial na próxima década”,
estabelecendo “uma política de incentivos na administração
pública que premeie a excelência e o cumprimento de objetivos
pré-definidos”. Só que a “excelência” e o “cumprimento de
objetivos” serão sempre definidos pelas chefias.
A
carreira de enfermagem será uma “não carreira”, onde se
progride consoante a opinião do chefe, como agora já se ensaiou com
os enfermeiros especialistas; progridem os afilhados, os
informadores, os detentores do cartão do partido, à boa moda do
antes 25 de Abril, faltará só assinar declaração de fidelidade
política. Será uma carreira em modo CIT, daí também o
desinteresse dos sindicatos em acabar com os contratos individuais, e
de agrado das chefias e administrações. Será simultaneamente o
acabar com as carreiras na administração pública – no privado,
será com o fim da contratação colectiva. Será o complemento de
destruição a breve prazo do SNS. Será a domesticação dos
enfermeiros, à semelhança dos professores, que devem pensar (na
lógica do governo) que não há alternativa e que não vale a pena
lutar.
Bem
pelo contrário, a luta a sério irá iniciar-se agora e
intensificar-se depois de Outubro.
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