terça-feira, 3 de setembro de 2019

Enfermagem: uma carreira made in OE e de agrado das chefias



A bastonária veio há pouco tempo lamentar o aumento da emigração dos enfermeiros, que atingiu este ano os níveis do tempo da troika, e atribuir o facto à desilusão provocada pela dita “nova carreira” - pode limpar à vontade as mãos à parede! É mais do que evidente que esta carreira, que deixou mais de metade dos enfermeiros de fora e provocou um sem número de injustiças teve a mão da Ordem, que esteve o tempo que a precedeu a funcionar como organização sindical.
Passados 10 anos após a entrada em vigor de uma carreira que na altura foi apresentada como a melhor do mundo, já que acabava com as categorias supérfluas de “enfermeiro-supervisor” e até de “chefe” e rearrumava os enfermeiros especialistas em “enfermeiro principal”, cujo salário médio seria o dobro do “enfermeiro especialista”, e - objectivo supremo de toda a movimentação, desde greves, manifestações, as maiores realizadas até então, juntando os sindicatos das duas centrais sindicais - instituía o grau de licenciatura.
Só que havia uma "pequena" questão: os “doutores” continuavam a auferir o mesmo salário que recebiam antes do reconhecimento da licenciatura. Outros problemas surgiram, que os sindicatos não conseguiram ou não quiseram ver: os especialistas desapareceram, porque concurso para enfermeiro principal nunca abriu; os salários estagnaram porque, entre outras coisas, a carreira e as progressões na função pública congelaram. O pretexto foi a crise e a subsequente intervenção da troika.
Com a substituição do PSD/CDS pelo PS no governo, os sindicatos em vez de reactivarem a carreira em hibernação forçada, vieram com a proposta de uma nova. O SEP inclusivamente fez um Congresso onde se apresentou a necessidade de “nova carreira”, mas sem conseguir explicar a caducidade ou a desactualização da carreira ainda em vigor, pelo menos no papel.
Veio, finalmente, a “nova carreira” - Decreto-Lei nº 71/2019, de 27 de Maio – que para além de não resolver as questões antigas ainda acrescentou mais algumas, e não só as já conhecidas “injustiças relativas”. Os sindicatos de pronto manifestaram o seu desagrado, genuíno ou fingido, mas manifestaram-se:
O SEP: “a carreira, agora publicada, constitui um pesado revés nas legítimas e justas expectativas e aspirações dos enfermeiros em possuírem uma carreira que valorize e dignifique o seu desenvolvimento profissional e salarial”... nomeadamente, “a imposição de uma quota de 25% (propusemos que fosse de 50%) de postos de trabalho para a categoria de Enfermeiro Especialista” ou “a imposição das regras de transição que obriga a que cada enfermeiro transite para as categorias de especialista ou de gestor com o mesmo salário.”
O SINDEPOR: “repudia a publicação do Decreto-Lei n.º 71/2019, de 28 de Maio, que não passa de mais um ato a juntar a uma longa lista de completo desrespeito pela Enfermagem em Portugal. Consideramos tanto a forma como o conteúdo de todo o processo denominado de “negocial” uma farsa e um embuste uma vez que se concretizou a intenção demonstrada pelo Ministério da Saúde em 17 de janeiro de 2019, ignorando claramente e deliberadamente as pretensões dos Enfermeiros apresentadas pelos seus sindicatos”.
Os sindicatos prometeram luta. O SINDEPOR convocou greve para os dias 2 a 5 de Julho, que decorreu com elevada percentagem de adesão, provando que os enfermeiros na sua maioria estão revoltados com a situação, e o SEP ameaçou com “Carreira, Progressões e Especialistas: esta luta não pára” (06 de Junho) e “Estamos a intervir junto dos Grupos Parlamentares no sentido de suscitarem a “apreciação parlamentar”... Em breve avançamos com uma “Petição Pública”, a remeter à Assembleia da República, no sentido de serem debatidas em plenário as soluções de Carreira que são justas perante os enfermeiros. É a via legalista, dando na prática como inútil a luta mais dura que tanto têm apregoado.
Passado todo este tempo, a apreciação a fazer é fácil:
1- ao contrário do que afirma o SEP, há valorização para algumas categorias: o especialista passa ganhar em média mais 50 euros, para além do suplemento, os ditos “especializados” não tiveram que fazer concurso público, ao contrário dos especialistas na velha carreira (DL 437/1991); os chefes e supervisores passam a ganhar em média mais 300 euros, que são indubitavelmente os mais beneficiados, e duplamente: não desaparecem, recebem o maior aumento pecuniário e vêem o seu poder discricionário aumentado;
2- nem todos os especialistas foram recolocados na categoria, ou porque ficaram de fora na selecção feita pelos chefes - não houve critérios objectivos, por exemplo, nota ou/e tempo de especialidade ou de serviço – ou porque não se podia ultrapassar a quota dos 25%. Não se percebe que os sindicatos tenham reivindicado os 50%, sabendo que a intenção do governo era só os 25%, e não os 100%, que é o mais lógico: todos os enfermeiros devem ser especialistas;
3- a imposição de critério de transição para a categoria de enfermeiro especialista de “receberem o suplemento remuneratório” e a exclusão de enfermeiros já especialistas nos termos do DL 437/1991 mostra a intervenção da Ordem dos Enfermeiros, que teve em todo o processo um protagonismo que não lhe cabe legalmente e que foi ditado por obediência a agenda política do partido da bastonária – os sindicatos foram relegadas decididamente para segunda posição, com alguns deles, os que nem sempre estiveram com as greves, a desempenhar voluntariamente esse papel para não colocar em causa o governo;
4- o governo sempre manifestou, desde o início, uma explicita má-fé, que foi acompanhada pelas administrações da maior parte das instituições do SNS: pela não contabilização correcta e atempada dos pontos para progressão remuneratória; pela aprovação do Decreto-Lei nº27 de Abril de 2018, com retroactividade a partir de Janeiro, que deveria sair em 2017 a fim de os enfermeiros puderem actualizar a sua inscrição na Ordem; situação esta que foi exigida só em Agosto pelas administrações (CHUC, por exemplo) permitindo que estas beneficiassem de uma irregularidade pela qual também eram responsáveis; a não divulgação das listas de enfermeiros especialistas elaboradas pelas chefias em 2017, isto é, antes da publicação do Decreto-Lei, mas só depois, já com o facto consumado (O CHUC só agora publicou as listas dos enfermeiros consoante a data de inscrição ou actualização na Ordem, coisa que deveria ter feito em 2017!);
5- é notório não só a má-fé como todo o desprezo votado pelo governo aos sindicatos durante todo o processo (mais visível na não correcção das já referidas “injustiças relativas”), bem como o ódio dispensado a toda a classe dos enfermeiros. Foi o ataque pérfido contra as suas lutas, principalmente as greves cirúrgicas - atitude completamente diferente quando se trata de greves feitas pelos médicos ou pelos juízes. Foi o decretar da requisição civil, medida que faz inveja a qualquer governo de direita ou de extrema-direita. Esta política de ataque e de desconsideração de toda uma classe, um dos pilares fundamentais do SNS, só foi possível porque houve sindicatos, seguindo agenda partidária particular, que andaram, e continuam a andar, com o o governo do PS e do Costa ao colo.
O Costa, em entrevista recente dada ao Expresso, foi claro: “o país não pode estar refém das carreiras especiais da função pública”. E o PS, tempo antes, já dera a conhecer o seu programa eleitoral para as próximas eleições de 6 de Outubro, não deixando margem para dúvidas em relação às carreiras da administração pública, já que estas “custam todos os anos 200 milhões de euros e, deste valor, quase dois terços é gasto em carreiras especiais em que o tempo conta no processo de progressão” e “uma realidade que cobre cerca de um terço dos trabalhadores do Estado”, então há que desfazer o “desequilíbrio” e “limitar a política salarial na próxima década”, estabelecendo “uma política de incentivos na administração pública que premeie a excelência e o cumprimento de objetivos pré-definidos”. Só que a “excelência” e o “cumprimento de objetivos” serão sempre definidos pelas chefias.
A carreira de enfermagem será uma “não carreira”, onde se progride consoante a opinião do chefe, como agora já se ensaiou com os enfermeiros especialistas; progridem os afilhados, os informadores, os detentores do cartão do partido, à boa moda do antes 25 de Abril, faltará só assinar declaração de fidelidade política. Será uma carreira em modo CIT, daí também o desinteresse dos sindicatos em acabar com os contratos individuais, e de agrado das chefias e administrações. Será simultaneamente o acabar com as carreiras na administração pública – no privado, será com o fim da contratação colectiva. Será o complemento de destruição a breve prazo do SNS. Será a domesticação dos enfermeiros, à semelhança dos professores, que devem pensar (na lógica do governo) que não há alternativa e que não vale a pena lutar.
Bem pelo contrário, a luta a sério irá iniciar-se agora e intensificar-se depois de Outubro.

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