terça-feira, 26 de julho de 2022

A IDADE DE OURO DA PSIQUIATRIA

Durante muito tempo, até aos anos 1960 do século passado a generalidade dos psiquiatras vivia bastante isolada dos seus colegas médicos de outras especialidades. Uns, dedicado à clínica ambulatória, praticavam psicoterapia, em especial Psicanálise, que nada tinha que ver com as práticas médicas correntes, então dominadas pelos cirurgiões. Outros. nos grandes hospitais escondidos do mundo, e dele escondendo os doentes mentais graves, dedicavam-se às acções humanitárias possíveis quando não a experiências bizarras. Na melhor das hipóteses dedicavam-se ao estudo, contemplação e descrição dos estranhos seres humanos que mantinham sob o seu cuidado. Só as casa de repouso para doentes ricos, que enxameavam a Europa e, em especial, a Suíça, beneficiavam dos dois mundos, e obtinham a ajuda de médicos das outras especialidades.

Os psiquiatras europeus que iniciaram o seu trabalho nas décadas de 60 e 70, quer nos grandes hospitais, quer nas pequenas unidades, tinham conhecimento dos dois mundos e procuraram juntar-se aos seus colegas, tanto dos hospitais gerais, como dos cuidados primários ambulatórios. Foi nessa altura que se promoveu por todo o mundo a desinstitucionalização dos doentes mentais, um pouco pressionada pelos movimentos da antipsiquiatria, mas facilitada pelo uso dos neurolépticos. Alguns termos apareceram desde então: a Psiquiatria de ligação apoiava a relação com os colegas de outras especialidades nos hospitais gerais; a Psiquiatria comunitária era a designação usada para a colaboração mais descentralizada com os médicos dos cuidados primários. Uma e outra destas «especializações» apenas demonstrava a tendência dos psiquiatras para se relacionarem com os outros médicos. Aliás, eram também estes que, conhecendo os notáveis avanços da psicofarmacologia, procuravam os psiquiatras para melhor tratarem os seus doentes.

Pelo contrário, nos Estados Unidos, onde a Psicanálise imperava, a medicalização da Psiquiatria foi conturbada. As histórias que antecederam o consenso da DSM-III, publicada em 1980, estavam repletas de golpes palacianos que desacreditaram a Psiquiatria e a trouxeram para a praça pública. Sem capacidade de resposta, os psiquiatras americanos acabaram por ceder à influência dos vários lobbies. Bem ou mal, várias doenças foram esquecidas, mas muitas outras, e cada vez mais, começaram a entrar no mapa, correndo-se o risco de considerar patológico todo o comportamento humano minimamente desviante. Os europeus aceitaram com bons olhos a nova classificação americana, mas não se deixaram influenciar exageradamente. No fundo, eles tinham vindo a adaptar-se de um modo muito mais flexível aos novos tempos da psicofarmacologia.

Ironicamente, foi o movimento da antipsiquiatria que mais fez pela integração da Psiquiatria na Medicina. Pela voz de filósofos, como Foucault e Deleuze, sociólogos, como Erving Goffman e Thomas Scheff, ou psicoterapeutas como Thomas Szasz e Ronald Laing, bem como movimentos políticos, a luta contra o encarceramento e tratamento dos doentes mentais, no clima antiautoritário do pós-guerra, conquistou inúmeros adeptos nas elites universitárias do mundo ocidental. O movimento tomou maior pujança com o aparecimento, em 1975, do filme de Milos Forman, Voando sobre um Ninho de Cucos, baseado numa história real. De um modo curioso, não existiu grande adesão por parte de doentes e muito menos das suas famílias.

De qualquer modo, os antipsiquiatras, para além de criticarem os desmandos já conhecidos de algumas décadas atrás, e ainda existentes nos grandes hospitais com doentes crónicos que não tinham adquirido aptidões para a vida, faziam críticas pertinentes à nova prática psiquiátrica. Uma delas era o desinvestimento na relação médico-doente, pois 10 a 15 minutos chegavam para listar os sintomas e decidir sobre o tipo e dose dos medicamentos a prescrever. Obviamente, os psiquiatras defendiam-se com a maior ligação à Medicina e habituaram-se a um trabalho mais interdisciplinar, cooperando com assistentes sociais, psicólogos e enfermeiros, para além dos seus colegas de outras especialidades que partilhavam o mesmo espaço físico.

Também a Psicanálise não tinha, entre os psiquiatras europeus, a mesma força que nos Estados Unidos. Na Europa, a guerra entre psicoterapeutas e psiquiatras biológicos não era política, mas sim de discussão de ideias. Por isso, os europeus aceitaram com alguma condescendência as novas psicoterapias que, pelas mãos de psicólogos, linguistas e outros profissionais que não tinham acesso, nem à Psiquiatria biológica, nem à Psicanálise, surgiram, exactamente, nos Estados Unidos. A Terapia familiar, o Psicodrama, as diversas terapias com base no corpo, foram sendo acolhidas e partilhadas com psicólogos ou assistentes sociais sem grande entusiasmo. Mas o que mais interessava aos psiquiatras europeus eram os procedimentos psicoterapêuticos mais curtos e eficazes ligados a alguns diagnósticos, que podiam ser testados numa base científica, tal como sucedia com os psicofármacos. Esse era o caso das Terapias Comportamentais e Cognitivo-Comportamentais, estas últimas anunciadas por Aaron Beck para a depressão. Com a sua racionalidade e evidência científica, podiam emparelhar com os psicofármacos nos casos que estes não resolviam, ou serem aplicadas em concomitância com eles, na maior parte das vezes pelas mãos de psicólogos clínicos.

Entretanto, os conhecimentos químicos começaram a disseminar-se e, paralelamente à Indústria Farmacêutica, as redes de drogas licitas (como o álcool) ou ilícitas (como a Cocaína, derivados da Morfina, ou o Haxixe) invadiam jovens endinheirados e quadros executivos. O problema causou alarme público e, em cada país à sua maneira, foram criados centros de toxicodependências com intervenção de psiquiatras. Muitos doentes, porém, mantinham em segredo os seus consumos e viajavam entre a rua, os centros de adições e os serviços psiquiátricos, por vezes com diferentes diagnósticos. A isto juntava-se o autoconsumo de medicamentos psiquiátricos sem critério, bem como a resistência de algumas pessoas a reconhecerem as suas doenças e a aceitarem o tratamento adequado. Para dar resposta aos novos problemas, as Leis de Saúde Mental, que previam a organização dos cuidados, bem como internamentos ou tratamentos compulsivos, iam aparecendo em cada país. A Psiquiatria, mais uma vez, confrontava-se com a Lei.

Para o fim do milénio existiram três grandes avanços que, previsivelmente, iriam retirar as zonas sombrias que ainda existiam na mente e na sua patologia. O primeiro foi o desenvolvimento dos computadores, que iria permitir análises estatísticas das escalas de sintomas, então em desenvolvimento, e que podiam fazer luz sobre as classificações e, portanto, sobre a nosologia psiquiátrica. O segundo, também ajudado pela computação, foram as imagens do cérebro e da sua actividade química e eléctrica. O terceiro foi a catalogação completa do código genético humano. Conciliados com a ciência, que lhes tinha proporcionado os mais eficazes meios de tratamento, os psiquiatras ansiavam por novas descobertas que, em 2010, ainda não eram claras. Não se suspeitava então que elas estivessem na base do fim da idade de ouro.

A Indústria Farmacêutica em Portugal

Temos hoje de admitir que, durante a segunda metade do século xx, a Psiquiatria foi completamente dominada pela Indústria Farmacêutica. Os empregadores e os Estados deixaram de investir na necessária actualização dos médicos, e a Indústria, incluindo os fabricantes de equipamentos, rapidamente se substituíram a eles.

Como mero exemplo, em 1976 caiu-me nas mãos, para o testar em doentes esquizofrénicos, um novo medicamento: a Clozapina. Este medicamento tinha sido sintetizado em 1959 e apareceu nas mãos da multinacional Sandoz, sob o nome de Leponex, quando comprou o laboratório falido que o tinha descoberto. Mas só em 1972 é que a Clozapina foi reconhecida como um potente, senão o mais eficaz, dos recursos terapêuticos contra a psicose esquizofrénica. Entretanto, o mercado estava já invadido por numerosos e lucrativos psicofármacos. Quando foi experimentado pelos psiquiatras americanos, uma década depois do seu uso na Europa, a imprensa celebrava a «cura da esquizofrenia». O entusiasmo de todos os cuidadores de doentes psicóticos foi enorme, o medicamento foi então amplamente usado e corria o risco de competir com todos os outros, alguns dos quais da própria Sandoz. O que se passou a seguir foi curioso. O Laboratório tentou suspender o medicamento, a propósito de alguns efeitos secundários (agranulocitose) que só apareceram na Bélgica. Os psiquiatras de todo o mundo lutaram para que o medicamento se mantivesse no mercado (1), enquanto o laboratório acabou por condicionar fortemente a sua utilização. Mais interessante foi o facto de os medicamentos deste tipo, chamados antipsicóticos atípicos, só se terem desenvolvido Vinte anos após a entrada do Leponex no mercado e, aparentemente, sem que tenham demonstrado uma eficácia superior. Este pormenor, no entanto, pertence à história do lucrativo desenvolvimento dos psicofármacos após a década de 1960, em que as companhias farmacêuticas começaram a ditar a sua lei, aliás controladas por agências nacionais de medicamentos que também iam lucrando com a produção e modificação de novos fármacos.

Em 1978 realizou-se em Barcelona o II Congresso de Psiquiatria Biológica (o primeiro tinha sido realizado na Argentina em 1974). Foi com grande entusiasmo que muitos de nós rumaram ao congresso a suas expensas, pois as companhias farmacêuticas ainda não os patrocinavam. Um dos temas fortes desse congresso seria ainda a hipotética descoberta de uma molécula que, isolada na urina dos esquizofrénicos, causaria a sua doença. O panorama mudaria passados alguns anos, pois os laboratórios farmacêuticos passaram a financiar congressos internacionais, em locais idílicos, disputando entre si os convites aos psiquiatras para os frequentar e, naturalmente, apresentarem e promoverem os seus produtos. Aliás, as próprias revistas de referência dependiam dos anúncios publicados nas suas páginas.

Porém, a competição entre as várias companhias era grande, enquanto um número cada vez maior de psicofármacos diferentes aparecia no mercado. Os psiquiatras que lideravam a opinião sabiam disso e informavam-se da eficácia e problemas dos medicamentos, mais pela informação dos competidores do que pela promoção dos fabricantes. Existia um complexo jogo entre as várias companhias farmacêuticas e os psiquiatras, enquanto o conhecimento evoluía e o arsenal terapêutico era cada vez mais diverso,

eficaz e seguro. Tudo começou, entretanto, a mudar a partir da concentração da Indústria Farmacêutica ao longo do século XXI, ao mesmo tempo que passou a investir menos nos psicofármacos. Nestes tempos de transição, começaram e existir fortes contradiçÕes entre a actividade clínica e o financiamento da actualização dos médicos. Foi a minha geração que, com grande voluntarismo, ajudou a criar e integrou um Serviço Nacional de Saúde público e gratuito que, rapidamente, melhorou todos os índices sanitários em Portugal. Entretanto, tudo foi mudando, enquanto também a Medicina ia adquirindo novas, mas caras tecnologias de diagnóstico e terapêutica a que os médicos não podiam ser alheios. Mas eram os interessados na venda de tecnologias que promoveram a sua aceitação.

A própria investigação estava por conta das empresas privadas e do registo das suas patentes. O conflito entre os interesses privados e públicos só se tornou decisivo no final do século XX, com acorrida entre um consórcio internacional, o Projecto do Genoma Humano, e uma empresa privada, a Celera Genomics, para a sequenciação completa dos genes humanos. Só desde então, os institutos de investigação públicos e os cientistas ligados às universidades começaram a desenvolver as suas descobertas em prol de interesses não comerciais.

Nos anos 1980, era claramente a Indústria Farmacêutica que dominava a Psiquiatria através dos patrocínios da investigação, nela incluindo os ensaios clínicos e sua divulgação em revistas, congressos e contactos pessoais com os psiquiatras clínicos. E os novos medicamentos, cada vez mais seguros e com indicações específicas, eram a novidade de cada congresso ou reunião. Em várias capitais da Europa e América (ainda existia a Cortina de Ferro), os psiquiatras americanos e europeus, incluindo os portugueses, iam convivendo e discutindo entre si as novas descobertas e a própria organização dos serviços em cada país.

O objectivo era então colocar os doentes em serviços de portas abertas junto dos hospitais, em permanente interacção com as outras especialidades médicas. Um dos psiquiatras que mais lutou por essa mudança foi Paes de Sousa. Chegou a aceitar um cargo político afim de promover esta reforma. Com muitos impedimentos, saiu mal, mas deixou sementes. Em 1998 saiu, em Portugal, a primeira Lei de Saúde Mental, propondo que os doentes psiquiátricos fossem tendencia1mente internados em regimes abertos nos hospitais gerais, e seguidos preferencialmente nos centros de saúde periféricos, perto das suas comunidades.

Naqueles novos serviços hospitalares, os psiquiatras relacionavam-se com serviços de Neurologia e com muitas outras especialidades que podiam apoiar a Psiquiatria. Além disso, os doentes tinham acesso a todos os exames complementares, incluindo aqueles que se desenvolveram mais recentemente: imagens cerebrais e genética. Na transição do século, com a promessa de que estes recursos médicos também iriam servir a Psiquiatria, a posssibilidade de tratarmos doenças bem delimitadas com tratamentos específicos, tal como acontecia na Medicina e na Cirurgia,era uma esperança em que todos acreditávamos ingenuamente.

Notas: 1 Nessa altura, eu e alguns colegas produzimos um parecer, responsabilizando o Laboratório pelos danos causados aos pacientes já tratados, caso o medicamento fosse interrompido. Produzimo-lo gratuitamente, porque entendíamos estar a defender os doentes. Por essa razão, acabámos por ser vítimas de um processo judicial, sob suspeita de que seríamos pagos lateralmente (por exemplo, em viagens ou ofertas). Claro que o processo foi arquivado porque não existiram as supostas compensações da Sandoz. Também nunca chegámos a saber a origem do processo.

Pequena História da Psiquiatria – Os desafios das doenças mentais, J. L. Pio Abreu. Publicações Dom Quixote, 2021. 

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