por Pedro Almeida Vieira
O PÁGINA UM vai fazer um diagnóstico completo aos financiamentos declarados entre farmacêuticas e sociedades médicas, vasculhando na base de dados da Transparência e da Publicidade do Infarmed, uma plataforma que deveria ser de fácil leitura e consulta, mas que tem as suas nuances. Este é o primeiro de um conjunto de artigos que mergulhará a fundo nas promíscuas relações entre médicos e farmacêuticas. Para já, fique a saber que de quanto se está a falar quando se fala de dinheiro envolvido.
São 49 milhões euros nos últimos cinco anos. Foram quase 12
milhões de euros no ano passado. Não há nem nunca houve crise para as
principais agremiações de médicos e de outros profissionais de saúde, que dão
pelo título de “sociedade portuguesa” de uma qualquer especialidade.
Embora publicamente as suas opiniões,
particularmente dos seus dirigentes sejam sempre vistas como independentes, na
verdade as sociedades científicas de médicos e outros profissionais de saúde
têm um cordão umbilical que se encontra bem preso, e que as alimenta, e que se
chama indústria farmacêutica. E que tem depois retorno. Ninguém está
interessado em o cortar. Até porque não há almoços de borla neste apetecível
negócio. E há muitos que gostam. Menos a independência. E a deontologia.
Um levantamento exaustivo do PÁGINA UM à Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed – uma “operação” mais complexa do que seria admissível (ver texto em baixo) – identificou 94 sociedades científicas (e um pequeno montante não identificado) – congregando quase todas as especialidades médicas e de outras áreas da saúde – que receberam montantes de 135 empresas do sector farmacêutico.
Para os últimos cinco anos, o PÁGINA UM
identificou 5.745 eventos patrocinados pela indústria farmacêutica às sociedades
identificadas, sobretudo para a realização de congressos, pagamento de quotas e
despesas de funcionamento ou realização de campanhas de sensibilização e
estudos.
Há de tudo um pouco, embora este levantamento
até exclua, porque será abordado em artigo independente, os pagamentos
individuais das farmacêuticas a milhares e milhares de médicos para inscrições
em congressos e conferências organizados pelas sociedades. Esse dinheiro acaba,
obviamente, nos cofres das sociedades.
Se o número de eventos impressiona pela
quantidade – por exemplo, só no ano passado, o PÁGINA UM identificou 1.345
registos na base de dados do Infarmed envolvendo pagamentos de farmacêuticas às
sociedades, o que representa mais de cinco por dia útil –, quando então se olha
para os cifrões não restam dúvidas sobre a discreta, mas tenaz influência das
farmacêuticas junto da classe médica e de outros profissionais de saúde.
E também não ficam dúvidas sobre o carácter pouco filantropo deste sector: as farmacêuticas são pragmáticas e apostam apenas nas sociedades que as podem depois beneficiar. O jogo é simples e transparente, diga-se.
Com efeito, analisando com detalhe a
contabilidade anual das diversas sociedades – que excluem, assim, algumas
poderosas agremiações, como a Associação Portuguesa de Urologia, a especialidade
do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães – verifica-se que
as farmacêuticas olham para uns como filhos, e para outros como mendigos.
Comecemos pelos mendigos.
São 45 as sociedades que, no total do último
quinquénio, receberam menos de 10 mil por ano. Seis nem sequer aos mil euros
anuais chegaram. E não é por não precisarem.
Ninguém jamais duvidará da importância do
objecto social da Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Familiar, ou da
Sociedade Portuguesa de Neurociências, ou da Sociedade Portuguesa de Alcoologia
ou até da Sociedade Portuguesa de Virologia, ademais vendo os tempos que
correm.
Só que, para a indústria farmacêutica, estas e
outras sociedades têm um problema: as respectivas especialidades receitam
pouco, ou em pequena quantidade. Não dão retorno. Por isso, uma empresa como a
Pfizer faz um acto de “caridade” à Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde
Familiar quando lhe concede 450 euros para um congresso, mas já estará a tratar
de negócios quando entrega quase 370 mil euros num ano destinada a uma campanha
de sensibilização da vacinação pneumocócica à Sociedade Portuguesa de
Pneumologia, como fez no ano passado.
Na verdade, algumas sociedades médicas têm
tanta capacidade para atrair farmacêuticas como a luz as melgas. Muitas
sociedades sabem tão bem isto que colocam previamente tabelas de preços para
patrocínio de congressos, para todos os gostos e bolsos. O modus operandi mais
corriqueiro passa por “oferecer” aos interessados um de três tipos de
patrocínios: Platina (só há, por regra lugar para um, mas paga-se bem), Ouro
(geralmente mais do que um, mas menos de cinco), e por fim Prata. Escolhendo
pelo menu, as farmacêuticas sabem logo o que têm, em termos de espaço de
exposição e atenção, mas também quanto lhes custa esta bondade.
Em sociedades importantes, como por exemplo a
de Cardiologia, um destes patrocínios não é coisa barata: no ano passado, a
Novartis teve de pagar patrocínios deste género no valor de quase 310 mil
euros. Em 2020, a AstraZeneca deu 80 mil; em 2021 ficou-se pelos 58 mil.
Nenhuma das grandes farmacêuticas quer ficar para trás nas simpatias dos
cardiologistas na hora dos congressos. Na lista de patrocinadores da Sociedade Portuguesa
de Cardiologia contam-se 13 farmacêuticas que concederam mais de 50 mil euros
apenas no ano passado.
Financiamento das 20 principais sociedades em função dos montantes atribuídos pelas farmacêuticas entre 2017 e 2021. Fonte: Infarmed.
Esta sociedade não surge aqui apenas como
exemplo: é aquela que mais amealhou no último quinquénio: 6.817.254 euros. No
ano passado atingiu o valor máximo dos últimos cinco anos (quase 1,93 milhões
de euros), que deu para recuperar uma perda significativa de receitas no
primeiro ano de pandemia: em 2020 “apenas” recebera 670.184 euros. Portanto,
por exemplo, na hora de se falar em miocardites, convém sempre atender-se tanto
às questões científicas como às de outra natureza.
Não surpreende também que as Sociedades de
Medicina Interna e de Pneumologia surjam em lugar de destaque na atracção das
liberalidades das sociedades farmacêuticas. A primeira não foi muito afectada
pela pandemia – mesmo assim “perdeu” no ano de 2020 entre 100 mil e 200 mil
euros face ao que recebia antes da pandemia. No último quinquénio garantiu
“bondades” das farmacêuticas no valor de 5,86 milhões de euros.
Quanto à Sociedade Portuguesa de Pneumologia, o primeiro ano da pandemia não correu particularmente mal – recebeu um pouco mais de 786 mil euros –, mas 2021 superou as expectactivas, muito graças à Pfizer.
O ano passado acabou com os cofres desta
sociedade médica a encaixar 1.301.972 euros de 25 farmacêuticas – e quase todas
nunca falham apoio em qualquer ano, ou seja, são habitués. O quinquénio
2017-2021 concluiu-se com um pecúlio de 4,35 milhões de euros das
farmacêuticas.
Também especialidades muito apetecíveis para
as farmacêuticas são as de Reumatologia, de Oncologia, de Pediatria e de
Gastrenterologia, cujas sociedades médicas não atingem os montantes das três
que ocupam o pódio, mas não se podem queixar.
Todas receberam, nos últimos cinco anos,
apoios das farmacêuticas entre os dois e os três milhões de euros. Todas também
viram o ano de 2021 terminar com mais dinheiro nos cofres, um alívio
particularmente para as Sociedades Portuguesas de Reumatologia e de
Gastrenterologia que tiveram um impacte negativo com a pandemia. Como em 2020 o
Governo decidiu suspender muitos actos médicos, menos diagnósticos resultaram
em menos receitas e em menos fármacos vendidos (ou a vender), e portanto as
farmacêuticas cortaram-se na hora de entregar o cheque a estas sociedades.
Um caso exemplar sobre os mecanismos de
financiamento observa-se com a recém-criada Sociedade Portuguesa de
Farmacêuticos dos Cuidados de Saúde, que ainda se encontra em comissão
instaladora desde 2019. Integrando profissionais com uma enorme influência na
escolha dos fármacos a prescrever ou encomendar, sobretudo ao nível do Serviço
Nacional de Saúde, rapidamente esta sociedade atraiu financiadores. Em 2019,
por ser nova, apenas recebeu cerca de 85 mil euros, mas subiu logo para os 320
mil no primeiro ano da pandemia. Terminou o ano de 2021 com um pecúlio de um
pouco superior 617 mil euros das farmacêuticas, ocupando já a sexta posição das
sociedades com maior poder de atracção.
Amanhã, o PÁGINA UM revelará, com maior
detalhe, quais as farmacêuticas que financiam cada uma das sociedades, e com
que valores. Este artigo constitui apenas uma mera introdução.
NOTA: Pode aceder à síntese dos montantes
arrecadados por cada uma das sociedades no quinquénio 2017-2021, provenientes
das farmacêuticas, AQUI.
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