segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Sociedades médicas: as máquinas ligadas às farmacêuticas

por Pedro Almeida Vieira 

O PÁGINA UM vai fazer um diagnóstico completo aos financiamentos declarados entre farmacêuticas e sociedades médicas, vasculhando na base de dados da Transparência e da Publicidade do Infarmed, uma plataforma que deveria ser de fácil leitura e consulta, mas que tem as suas nuances. Este é o primeiro de um conjunto de artigos que mergulhará a fundo nas promíscuas relações entre médicos e farmacêuticas. Para já, fique a saber que de quanto se está a falar quando se fala de dinheiro envolvido.

São 49 milhões euros nos últimos cinco anos. Foram quase 12 milhões de euros no ano passado. Não há nem nunca houve crise para as principais agremiações de médicos e de outros profissionais de saúde, que dão pelo título de “sociedade portuguesa” de uma qualquer especialidade.

Embora publicamente as suas opiniões, particularmente dos seus dirigentes sejam sempre vistas como independentes, na verdade as sociedades científicas de médicos e outros profissionais de saúde têm um cordão umbilical que se encontra bem preso, e que as alimenta, e que se chama indústria farmacêutica. E que tem depois retorno. Ninguém está interessado em o cortar. Até porque não há almoços de borla neste apetecível negócio. E há muitos que gostam. Menos a independência. E a deontologia.

Um levantamento exaustivo do PÁGINA UM à Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed – uma “operação” mais complexa do que seria admissível (ver texto em baixo) – identificou 94 sociedades científicas (e um pequeno montante não identificado) – congregando quase todas as especialidades médicas e de outras áreas da saúde – que receberam montantes de 135 empresas do sector farmacêutico.

Para os últimos cinco anos, o PÁGINA UM identificou 5.745 eventos patrocinados pela indústria farmacêutica às sociedades identificadas, sobretudo para a realização de congressos, pagamento de quotas e despesas de funcionamento ou realização de campanhas de sensibilização e estudos.

Há de tudo um pouco, embora este levantamento até exclua, porque será abordado em artigo independente, os pagamentos individuais das farmacêuticas a milhares e milhares de médicos para inscrições em congressos e conferências organizados pelas sociedades. Esse dinheiro acaba, obviamente, nos cofres das sociedades.

Se o número de eventos impressiona pela quantidade – por exemplo, só no ano passado, o PÁGINA UM identificou 1.345 registos na base de dados do Infarmed envolvendo pagamentos de farmacêuticas às sociedades, o que representa mais de cinco por dia útil –, quando então se olha para os cifrões não restam dúvidas sobre a discreta, mas tenaz influência das farmacêuticas junto da classe médica e de outros profissionais de saúde.

E também não ficam dúvidas sobre o carácter pouco filantropo deste sector: as farmacêuticas são pragmáticas e apostam apenas nas sociedades que as podem depois beneficiar. O jogo é simples e transparente, diga-se.

Com efeito, analisando com detalhe a contabilidade anual das diversas sociedades – que excluem, assim, algumas poderosas agremiações, como a Associação Portuguesa de Urologia, a especialidade do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães – verifica-se que as farmacêuticas olham para uns como filhos, e para outros como mendigos.

Comecemos pelos mendigos.

São 45 as sociedades que, no total do último quinquénio, receberam menos de 10 mil por ano. Seis nem sequer aos mil euros anuais chegaram. E não é por não precisarem.

Ninguém jamais duvidará da importância do objecto social da Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Familiar, ou da Sociedade Portuguesa de Neurociências, ou da Sociedade Portuguesa de Alcoologia ou até da Sociedade Portuguesa de Virologia, ademais vendo os tempos que correm.

Só que, para a indústria farmacêutica, estas e outras sociedades têm um problema: as respectivas especialidades receitam pouco, ou em pequena quantidade. Não dão retorno. Por isso, uma empresa como a Pfizer faz um acto de “caridade” à Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Familiar quando lhe concede 450 euros para um congresso, mas já estará a tratar de negócios quando entrega quase 370 mil euros num ano destinada a uma campanha de sensibilização da vacinação pneumocócica à Sociedade Portuguesa de Pneumologia, como fez no ano passado.

Na verdade, algumas sociedades médicas têm tanta capacidade para atrair farmacêuticas como a luz as melgas. Muitas sociedades sabem tão bem isto que colocam previamente tabelas de preços para patrocínio de congressos, para todos os gostos e bolsos. O modus operandi mais corriqueiro passa por “oferecer” aos interessados um de três tipos de patrocínios: Platina (só há, por regra lugar para um, mas paga-se bem), Ouro (geralmente mais do que um, mas menos de cinco), e por fim Prata. Escolhendo pelo menu, as farmacêuticas sabem logo o que têm, em termos de espaço de exposição e atenção, mas também quanto lhes custa esta bondade.

Em sociedades importantes, como por exemplo a de Cardiologia, um destes patrocínios não é coisa barata: no ano passado, a Novartis teve de pagar patrocínios deste género no valor de quase 310 mil euros. Em 2020, a AstraZeneca deu 80 mil; em 2021 ficou-se pelos 58 mil. Nenhuma das grandes farmacêuticas quer ficar para trás nas simpatias dos cardiologistas na hora dos congressos. Na lista de patrocinadores da Sociedade Portuguesa de Cardiologia contam-se 13 farmacêuticas que concederam mais de 50 mil euros apenas no ano passado.

 

Financiamento das 20 principais sociedades em função dos montantes atribuídos pelas farmacêuticas entre 2017 e 2021. Fonte: Infarmed.

Esta sociedade não surge aqui apenas como exemplo: é aquela que mais amealhou no último quinquénio: 6.817.254 euros. No ano passado atingiu o valor máximo dos últimos cinco anos (quase 1,93 milhões de euros), que deu para recuperar uma perda significativa de receitas no primeiro ano de pandemia: em 2020 “apenas” recebera 670.184 euros. Portanto, por exemplo, na hora de se falar em miocardites, convém sempre atender-se tanto às questões científicas como às de outra natureza.

Não surpreende também que as Sociedades de Medicina Interna e de Pneumologia surjam em lugar de destaque na atracção das liberalidades das sociedades farmacêuticas. A primeira não foi muito afectada pela pandemia – mesmo assim “perdeu” no ano de 2020 entre 100 mil e 200 mil euros face ao que recebia antes da pandemia. No último quinquénio garantiu “bondades” das farmacêuticas no valor de 5,86 milhões de euros.

Quanto à Sociedade Portuguesa de Pneumologia, o primeiro ano da pandemia não correu particularmente mal – recebeu um pouco mais de 786 mil euros –, mas 2021 superou as expectactivas, muito graças à Pfizer.

O ano passado acabou com os cofres desta sociedade médica a encaixar 1.301.972 euros de 25 farmacêuticas – e quase todas nunca falham apoio em qualquer ano, ou seja, são habitués. O quinquénio 2017-2021 concluiu-se com um pecúlio de 4,35 milhões de euros das farmacêuticas.

Também especialidades muito apetecíveis para as farmacêuticas são as de Reumatologia, de Oncologia, de Pediatria e de Gastrenterologia, cujas sociedades médicas não atingem os montantes das três que ocupam o pódio, mas não se podem queixar.

Todas receberam, nos últimos cinco anos, apoios das farmacêuticas entre os dois e os três milhões de euros. Todas também viram o ano de 2021 terminar com mais dinheiro nos cofres, um alívio particularmente para as Sociedades Portuguesas de Reumatologia e de Gastrenterologia que tiveram um impacte negativo com a pandemia. Como em 2020 o Governo decidiu suspender muitos actos médicos, menos diagnósticos resultaram em menos receitas e em menos fármacos vendidos (ou a vender), e portanto as farmacêuticas cortaram-se na hora de entregar o cheque a estas sociedades.

Um caso exemplar sobre os mecanismos de financiamento observa-se com a recém-criada Sociedade Portuguesa de Farmacêuticos dos Cuidados de Saúde, que ainda se encontra em comissão instaladora desde 2019. Integrando profissionais com uma enorme influência na escolha dos fármacos a prescrever ou encomendar, sobretudo ao nível do Serviço Nacional de Saúde, rapidamente esta sociedade atraiu financiadores. Em 2019, por ser nova, apenas recebeu cerca de 85 mil euros, mas subiu logo para os 320 mil no primeiro ano da pandemia. Terminou o ano de 2021 com um pecúlio de um pouco superior 617 mil euros das farmacêuticas, ocupando já a sexta posição das sociedades com maior poder de atracção.

Amanhã, o PÁGINA UM revelará, com maior detalhe, quais as farmacêuticas que financiam cada uma das sociedades, e com que valores. Este artigo constitui apenas uma mera introdução.

NOTA: Pode aceder à síntese dos montantes arrecadados por cada uma das sociedades no quinquénio 2017-2021, provenientes das farmacêuticas, AQUI.

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