Ou um outro olhar sobre Portugal no início da pandemia covid-19
Por Miguel
Szymansky*
Portugal esteve
durante duas semanas no centro das atenções da imprensa e das televisões na
Alemanha. Já não acontecia nada assim há cinco anos, desde a vitória no
campeonato europeu de futebol. Não foi por menos: de melhores na bola na
Europa, passámos a piores na pandemia.
O que o mundo não
sabe, e na Alemanha a maioria da pessoas não imagina, é como funcionava a rede
hospitalar em Portugal já antes do Covid-19: esperas de anos por uma consulta
de especialidade, listas de espera para operações tão longas que muitas já só
poderiam ser realizadas post mortem, escassez crónica de material de
enfermagem, tudo preso por arames, só com a boa vontade e dedicação de médicos
e enfermeiros a evitar o colapso programado.
A Alemanha, que
com tanto interesse olhou para a situação portuguesa catastrófica dos últimos
dez dias, não conhece a dos últimos dez anos: a mando de Bruxelas e de Berlim
poupou-se no investimento público ao ponto de ferir de morte a saúde e deixar
pelas ruas da amargura a administração da coisa pública. Os 78 mil milhões de
empréstimo da Troika foram, maioritariamente e pelo caminho mais directo, para
salvar a banca portuguesa. Um passo necessário do ponto de vista do governo
alemão, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional: os maiores
credores dos bancos portugueses são os bancos alemães. Se os bancos portugueses
falissem, a banca alemã constipava-se. Salvaram-se, por enquanto, os bancos.
Mas o crédito mal-parado ameaça disparar, quando terminarem as moratórias, e
levá-Ios-á novamente para os cuidados intensivos. Por enquanto morrem as
pessoas com Covid-19, às 200 e 300 por dia. O número de novas infecções tem
sido durante semanas cinco a dez vezes mais alto do que na Alemanha.
O Mas para se
perceber as notícias recentes de mortes em número recorde, as filas de
ambulâncias em frente aos hospitais, os corredores cheios de macas, tem de se
recuar às notícias de antes da pandemia: "Emigração de médicos triplica
nos primeiros seis meses deste ano" escrevia o Diário de Notícias, oito
meses antes da primeira onda de Corona rebentar em Portugal em Março do ano
passado. Um ano antes, o título do jornal Público era "Emigração de
enfermeiros voltou a duplicar". Do que é que estavam à espera? Que
emigrassem só calceteiros e etnomusicólogos?
No início deste
mês também eu fiquei comovido com a recepção que os militares portugueses
fizeram aos seus 27 camaradas alemães, entre eles oito médicos e alguns
enfermeiros, aterrados em Lisboa para ajudar no combate à pandemia. Um oficial
português olhava com lágrimas nos olhos para o céu de onde tinha aterrado um
avião militar alemão. Mas convém não esquecer: os mais de 10.000 enfermeiros e
mais de 4.000 médicos portugueses que emigraram nos últimos dez anos para a
Alemanha, a Áustria, Holanda ou Suécia (para não falar do Reino Unido) estão a
fazer muita falta em Portugal. Esses milhares de enfermeiros e de médicos
emigraram, ano após ano, em número sempre crescente até 2019, incentivados pela
narrativa política e com o aval dos sucessivos governos, por causa das
políticas de austeridade impostas a Portugal, por causa do desinvestimento, da
desindustrialização e dos baixos salários decretados por Bruxelas e Berlim.
Portugal continua
a ser um país de contrastes sociais chocantes. Mas a crise da saúde ameaça um
tsunami económico. Na Trafaria, uma vila na margem sul do Tejo, a pouco mais de
um quilómetro em linha aérea do Mosteiro dos Jerónimos, da milionária fundação
EDP, um edifício monumental em forma de OVNI, e da Torre de Belém, todos os
restaurantes e cafés estão fechados há semanas. Estima-se que 60% destas
empresas familiares em Portugal já estejam insolventes. Um grupo de pescadores,
um dos quais pai de uma colega de escola da minha filha, conversa à beira Tejo.
"Se os restaurantes não nos compram o peixe, temos de começar a
roubar".
Aqui, como em
centenas de outros bairros portugueses, sempre houve miséria. Mas havia
trabalho, precário, mas que dava para sobreviver. Mesmo ao lado, no Segundo
Torrão, um bairro de lata ilegal, moram mais de 400 famílias. A maioria das
pessoas apanhava todos os dias o barco para Belém para ir trabalhar nas casas e
nas lojas de Lisboa do outro lado do rio, a fazer limpezas, a tomar conta de
crianças, nas caixas de supermercados ou nas cozinhas de restaurantes. De um momento
para o outro ficaram sem rendimentos. Lisboa, onde em dez anos quintuplicaram
os hotéis de luxo e foram expulsos pelas 'leis do mercado' dezenas de milhares
de habitantes para dar espaço a milhares de hostels e alojamentos locais para
turistas, parece uma cidade fantasma. A aposta numa só carta, o turismo,
revela-se agora um erro colossal.
Nestes dias sai,
por coincidência, uma notícia no jornal Público: "Amnistias Fiscais
desvendam seis mil milhões de euros ocultados por três mil e seiscentos contribuintes".
Foram, em média, mais de um milhão e meio de euros lavados por cada um destes
'contribuintes'. Era dinheiro oculto, em contas bancárias fora de Portugal, na
Suíça, no Luxemburgo, em off-shores, a maioria com origem criminosa (corrupção,
fuga ao fisco, negócios ilegais etc.). Estes seis mil milhões de euros voltaram
ao circuito legal, impolutos, sem multas ou processos crime. Podem agradecê-lo
à cumplicidade dos últimos governos PSD, CDS/PP e PS. Desde já, desenganem-se
os leitores mais entusiásticos: André Ventura, o presidente do partido 'Chega',
foi simultaneamente inspector das Finanças, com licença sem vencimento, e consultor
de uma empresa de fiscalidade que monta este tipo de operações para os seus
clientes não pagarem impostos. Um dos mais conhecidos beneficiários desta
amnistia foi Ricardo Espírito Santo Salgado, o ex-presidente do Grupo Espírito
Santo. Só uma doença mais grave do que a causada por um vírus explica este tipo
de personagens.
In “Casa da Mulher
Ingrata”, 2021
* Jornalista e
escritor luso-alemão
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