sábado, 14 de março de 2020

O Presidente e o Coronavírus


Vasco Gargalo
Portugal vai entrar na fase dita “de mitigação” dentro de horas ou dias, disse a ministra; a OMS acaba de declarar que o surto do novo coronavírus atingiu o nível de pandemia; o Presidente Marcelo avisa que não pode haver crises no seu último ano de mandato, estando já em auto-quarentena por causa do vírus; o presidente da Assembleia da República continua a recusar que as reuniões do plenário sejam realizadas à porta fechada, contrariando as pressões do próprio partido e das outras bancadas; o primeiro-ministro Costa está em véspera de decretar o encerramento de todas as escolas do país, o que irá afectar uma população de 1,5 milhões de alunos; e o Tony Carreira adiou o concerto que estava previsto para este Sábado e que seria o primeiro após um longo interregno. O caso é sério!
O Presidente já declarou solenemente que não quer eleições antecipadas, nem crises em geral, por causa da estabilidade do regime político e da economia e, principalmente, coisa que não explicita, por estar não só em fim de mandato mas se encontrar em fase avançada de lançamento de recandidatura. Ter de dissolver a Assembleia da República, convocar eleições antecipadas e, eventualmente, propiciar maioria absoluta ao PS para poder governar a seu belo prazer, não era só um atentado à sua estratégia de algum controlo sobre o Governo, como lhe poderia estragar a imagem. E a imagem vai-se promovendo com atitudes de disseminação de “afectos”, o que quer que isso seja, e de alguma humildade, embora mal disfarçada, com a sua auto-reclusão a propósito de conter a propagação do vírus, como mais exemplo para todo o bom português do que possuir alguma idade e ter sido submetido recentemente a pequena intervenção cardíaca. Considerar esta atitude de poltronice ou cobardia política, aliás, congruente com a sua personalidade, não passará de maledicência e de má-fé.
Esta pandemia parece que vem mesmo a calhar para as nossas elites, a nível interno, e para o grande capital, a nível mais global. Em termos de nós por cá, poderá ser um bom pretexto para o Governo PS/Costa agravar medidas de austeridade, uma austeridade que terá ficado em banho-maria com o a ida do PS para a esfera governativa, com alguma aceitação da opinião pública e, preocupação de todos os governos que temos tido depois do 25 de Abril, sem que o povo se revolte. Será uma boa desculpa para a desaceleração da economia, com a revisão da meta do PIB em baixa, contenção da despesa pública com a Saúde e a Educação e salários da Função Pública e reformas e aposentações e diversos subsídios sociais. A recapitalização da banca, de certeza, que não será prejudicada, o Novo Banco não deixará de receber o seu quinhão já prometido, e haverá sempre dinheiro para as empresas, ou através do Orçamento do Estado ou dos Fundos Europeus que, no fim da linha, será sempre o povo a pagar.
Se uma parte da economia vier a ressentir-se com a crise do coronavírus, nomeadamente o turismo, no entanto, outra se desenvolverá, seja laboratórios e farmácias a facturar, assim como clínicas e hospitais privados onde já devem estar com máquina de calcular nas mãos, ou super-mercados a ficarem num ápice com as prateleiras vazias, como já aconteceu em Madrid, devido ao alarmismo inculcado na opinião pública pelas televisões e aparições constantes e inadequadas de governantes. Os patrões mais afectados pela diminuição do negócio já receberam do Governo a garantia de que os lucros não diminuirão: luz verde para o lay-off, com os salários dos trabalhadores a serem pagos pela Segurança Social, ou seja, por eles próprios, e linha financeira de apoio que já vai em 200 milhões de euros, bem como outros benefícios fiscais. A nível global, a crise económica será mascarada com a pandemia, esta terá as costas largas para explicar as mazelas do capitalismo, com a paragem da produção a servir às mil maravilhas o velho problema da produção em excesso capitalista, um dos factores das crises cíclicas, que já são um estado permanente. E, pelo menos para já, não será necessário uma guerra a nível mundial.
(...)
A pandemia do Covid-19 justificará também uma maior exploração sobre os trabalhadores, e sobre os povos em termos globais, e com uma maior manipulação da opinião pública, e inclusivamente dos próprios trabalhadores, como já se vê entre nós a respeito da greve dos trabalhadores do Hospital de Braga. Os trabalhadores deste hospital, mais precisamente os assistentes técnicos, limitam-se a reivindicar uma questão básica que é apenas beneficiar de um acordo coletivo de trabalho, questão que tem sido constantemente protelada pela administração que sempre actuou de má-fé. O Governo e os patrões, a começar pelo Estado, desde há muito que têm vindo a atacar um direito elementar dos trabalhadores, o direito à contratação colectiva, coisa que tem sido cada vez mais negada pelas sucessivas revisões da Lei do Trabalho, e agora, graças ao coronavirus, vai surgindo, pelo menos em alguma blogosfera e redes sociais, opinião favorável à criminalização dos trabalhadores e das suas organizações sindicais, porque se estariam a aproveitar de forma oportunista de uma situação má para o país, confundindo que em Portugal existem vários “países”, grosso modo, dois: o dos patrões e dos trabalhadores assalariados. As televisões têm sido os instrumentos de eleição para a intoxicação da opinião pública, simultaneamente vão aumentando as audiências, com maiores proventos da publicidade, isto é, vão lucrando com o mal dos outros, e não deixando de salientar a toda a hora a hipotética ineficiência do SNS, preparando o terreno para uma maior intervenção dos serviços privados de saúde, cujos acionistas não deixarão de enriquecer graças à ocasião.

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