segunda-feira, 23 de março de 2020

Estado de emergência: um álibi para os responsáveis e um perigo para os cidadãos


Vasco Gargalo
António Garcia Pereira
«Finalmente, para comunicar com o público, o Governo tratou de escolher duas pessoas: por um lado, a Directora-Geral de Saúde, Dra. Graça Freitas, pessoa tecnicamente competente, mas extremamente lenta nas decisões e incapaz no campo da comunicação com o público; por outro, a própria Ministra da Saúde, em quem mais do que justificadamente ninguém acredita, sobretudo quando se põe a falar de números. Isto, porque foi demitida do cargo de Presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) pelo anterior Ministro Adalberto Campos Fernandes por um relatório de auditoria do Tribunal de Contas ter posto a nu a completa manipulação, leia-se: falsificação, dos dados relativos às listas e aos tempos de espera dos doentes do SNS. É esta pessoa que tem o desplante de vir agora elogiar muito os grupos profissionais, em particular os enfermeiros e os médicos, que ela tanto atacou e até insultou há pouco tempo atrás. O que poderia então o Governo esperar da capacidade de ligação de um personagem como este com os cidadãos em geral que não fosse o desinteresse ou até o desprezo por parte dos mesmos cidadãos?
O que fazer então?
Os cálculos matemáticos da epidemiologia apontam para que, no espaço de uma semana, tenhamos qualquer coisa como 40 mil infectados pelo COVID-19. Ora, do que já se conhece dos outros Países, 80% (32.000) não representarão problemas, 15% (6.000) terão de ser tratados, mas não constituirão fonte de particular preocupação e 5% (2.000) constituirão um problema de saúde, e bem grave.
Há, pois, que preparar tudo para tratar bem, e de forma emergente, estes nossos concidadãos. Porém, neste momento, os ventiladores existentes no SNS são 1.142 e cerca de 250 nos privados, não chegando, pois, aos 1.500. E as vagas em unidades especializadas (como as de cuidados intensivos) são cerca de 940. Precisamente por não se ter tratado destas questões há 2, 3 ou mesmo mais semanas atrás, estão a verificar-se no presente momento enormes dificuldades na respectiva aquisição, que têm de ser vencidas.
E, sobretudo, e conforme recomenda a OMS e aconselham os médicos da cidade de Wuhan (que venceu o vírus e acabou de encerrar o último hospital de combate ao COVID-19), trata-se agora de testar, testar, testar sempre, sem constrangimentos administrativos ou financeiros. O que significa que é um perfeito e crasso erro negar ou, pelo menos, suscitar toda a sorte de entraves aos doentes dos médicos dos Centros de Saúde e dos Hospitais que entendem que tais pacientes deviam fazer o teste. A sua realização devia ser, não entravada, mas antes facilitada em toda a linha. 
Finalmente, é absolutamente essencial constranger ao máximo a propagação do vírus. Devíamos tê-lo começado a fazer há várias semanas atrás, mas, ainda que com esse grande atraso, temos agora de tudo fazer para travar o mais possível a sua progressão. E todas as medidas de constrição de contactos, cautelas preventivas das movimentações e concentrações de pessoas e até mesmo o fecho de fronteiras, sobretudo aéreas, mas também terrestres, devem ser vistas como necessárias e ser adoptadas a 100%. Mas, para tal, repito, não era precisa a declaração do estado de emergência que, suspendendo os direitos, liberdades e garantais fundamentais dos cidadãos – incluindo o basilar direito de resistência a ordens ilegais, consagrado no art.º 21º da Constituição – tem por pressuposto uma situação não apenas de calamidade, como de incapacidade de as instituições democráticas e os principais serviços públicos funcionarem.
Ora, estamos nós numa situação em que, por virtude da calamidade do COVID-19, não haja nem água, nem electricidade, nem gás, nem recolha de lixo, em que se sucedam os assaltos e as pilhagens, em que não há telefones, fixos os móveis, que funcionem e em que a situação que se vive é próxima do completo caos? É óbvio que não! E por isso, mesmo face a uma situação de calamidade, não se justifica que aquilo que tenha sido decretado seja o estado de emergência, e não, por exemplo, o estado de calamidade a nível nacional.
Mas a verdade é que, para além de tudo isto, se abriu também um perigosíssimo precedente para que, no futuro, quem tenha o poder nas mãos, perante uma vaga de protestos, de manifestações e de greves contra as políticas sociais, económicas e laborais de um dado Governo, e com argumentações muito semelhantes às de agora, se promova o decretamento do estado de emergência e assim se consigam suspender todos os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos por um período inicial de 15 dias que, através da sua sucessiva prorrogação, se pode transformar num tempo indeterminado. 
Foi a isto, verdadeiramente, que os cidadãos justamente preocupados com o COVID-19 quiseram abrir a porta?

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