Henricartoon
Raquel Varela
Caros,
a matéria mais perigosa na vida é a falta de curiosidade. O “saltar
para conclusões” sem saber nada de um assunto, nicles, rien. Em
matéria da greve de matérias perigosas estamos ao nível dos “5
mil euros dos estivadores”, e os “enfermeiros a matar doentes com
a greve” – é o nível zero do conhecimento, aqui reduzido a
“malandros, mafiosos”, que têm um “advogado que tem um bom
carro”. Nem sei que vos diga…é tanta a superficialidade dos
comentários que me dão uma certa vergonha alheia.
(...)Agora a greve – já que toda a discussão anterior é de uma enorme inutilidade. Vamos ao que interessa. A Fectrans, dirigida maioritariamente pelo PCP, está ligada eleitoralmente ao apoio ao Governo actual. Ao romperem uma regra de ouro do sindicalismo – manter a independência face a qualquer Governo – os dirigentes da Fectrans abriram a porta a uma ruptura com a sua base. E resolveram assinar um acordo onde os motoristas passariam a receber de facto menos 400 euros por mês e sem limite de horário real. Este grupo de motoristas (de matérias perigosas) achou que a vida ia virar uma geringonça – que só na aparência saía do mesmo sítio. E resolveu sair da Fectrans e fez um Sindicato novo. E uma greve que paralisou o país, e ameaçam com outra greve. Podemos ser contra ou a favor. O que não podemos é inventar desculpas que atacam pessoas individuais (e carros!), para eludir a compreensão do problema. Tudo indica que já se escreveram centenas de peças sobre o tema mas ninguém leu o acordo assinado pela Fectrans. Eu li, claro, todo.
Estes
motoristas, bem como quase todos no país, ganhavam até aqui da
seguinte forma: salário base mínimo de 600 euros, mais 500 ou 600
euros em “ajudas de custo” – em que os patrões não pagam
impostos – ; e mais 100 euros em horas extraordinárias. O que
correspondia a um total real de 15 horas por dia de trabalho quase
sempre e um salário trazido para casa no valor de 1200 a 1300 euros.
A
Fectrans assinou com os patrões um acordo em que deixa de haver de
facto limite de horas extra (é introduzido a laboração contínua,
como foi na Auto Europa), mas o salário aumenta 100 euros na base e
mais 300 euros em horas extraordinárias (não interessa se fazem
mais 10 ou 100, o valor a mais é sempre um fixo de 300 – como na
Auto Europa o valor ao fim de semana passou a ser fixo). Assim, os
patrões passam a pagar o mesmo, cerca de 1200 euros, mas entram 300
euros desses em impostos a Centeno, e os motoristas no fim ficam com
um salário real que trazem para casa de 900 euros (e com horas
extraordinárias ilimitadas).
Acrescento
que o número máximo fixo por lei de condução é 9 horas, mas 15
por dia no total – cargas, descargas etc, ou seja, estes homens
trabalhavam 15 horas por dia e traziam para casa 1200 euros e agora
trabalhariam 15 horas por dia e iriam trazer para casa 900 euros.
Centeno vai para o FMI de Bentley, pois consegue como prémio mais um
valor de impostos para pagar tiutlos de dívida pública-privada.
Eles, os motoristas, vão para a estrada arriscar a vida – mas
destas vez a vida vale menos 300 euros.
Em vez
disso resolveram fazer greve, por um aumento real do salário, e que
lhes permita viver sem trabalhar 15 horas por dia. A Galp, Repsol e
grandes empresas fixam um preço Km, subcontratam às empresas que
por sua vez subcontratam a empresas ainda mais pequenas – no fim da
cadeia estão estes homens. Que vieram dizer ao país que não vai
ficar no fim da cadeia, que querem salários decentes. O país não
gostou, deles, do advogado e do carro.
Conhecem
aquela velha canção norte-americana, cantada pelos membros dos seus
mais poderosos sindicatos, e pelo magistral Pete Seger? Chama-se
“Which side are you on?” – De que lado estás?. Ela desafia-nos
a pensar até onde vai o nosso cinismo. Ou o nosso sentido de justiça
social. São estas escolhas que decidem no fim do dia quem somos, e
quem queremos ser.
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