Paulo Guinote
«O
que a contestação dos professores não conseguiu levar adiante,
para além de uma ou outra iniciativa mais heterodoxa, está a
acontecer com os enfermeiros.
O
conflito entre os enfermeiros e o Governo assumiu uma faceta inédita
nos últimos 40 anos. Com raras excepções, a conflitualidade
laboral em Portugal foi enquadrada numa lógica herdada do marxismo,
mais ou menos leninista, mas sempre com uma dose suficiente de boas
maneiras e pragmatismo, mesmo quando o tom das declarações públicas
parecia muito exaltado. No fundo, o esquema dicotómico com os mesmos
actores e o mesmo tipo de acções dominou sempre a acção sindical,
com os sindicatos a enquadrarem com punho firme qualquer tentativa de
escapar à coreografia habitual, colaborando nesse aspecto com o
poder político, independentemente das inclinações políticas. Mais
ou menos “radical”, o nosso sindicalismo manteve-se convencional
e conservador. Mesmo quando se afirma de linhagem revolucionária,
tem horror a tudo o que perturbe a ordem estabelecida.
O que
a contestação dos professores não conseguiu levar adiante, para
além de uma ou outra iniciativa mais heterodoxa, está a acontecer
com os enfermeiros que, goste-se ou não, estão a levar a sua luta a
fundo, ignorando os acordos de cavalheiros de bastidores que sempre
acabaram por resolver outras disputas no passado. A exploração até
aos limites da via jurídica é apenas um exemplo. Assim como a forma
de se financiar uma greve recorreu aos novos mecanismos disponíveis
no século XXI, não me parecendo “ilegal” que qualquer cidadão
se disponha a apoiar uma causa que considere justa.
Contra
isso, mobilizou-se a apatia de uns e a militância de outros. A
“Direita” perdeu a capacidade de apelar a qualquer espírito de
“maria da fonte”, a menos que estejam em causa subsídios
públicos a interesses privados, e a “Esquerda” revelou até que
ponto define a sua aprovação política e moral das lutas laborais à
conformidade com o seu guião.
É
lastimável que o conflito tenha derrapado para uma campanha de
maledicência pura e dura, como a que tem sido dirigida aos
professores. É embaraçoso ler acusações sem qualquer prova
concreta a suportá-las (seja de “mortes” por causa das greves,
seja de tenebrosas fontes de “financiamento”, como se tivesse a
mínima moralidade nesse aspecto quem não quer que se conheça quem
financia as suas festas), ataques a uma classe a partir de um “rosto”
seleccionado para a demonizar ou estratégias de instrumentalização
do aparelho de Estado (até a ASAE) para combater uma classe
profissional só porque não alinha em passeatas e cantorias à porta
dos ministérios. Não percebo se acham que os enfermeiros são uma
cambada de idiotas instrumentalizados por ocultos interesse na
sombra, se o acesso à profissão é apenas permitido a quem seja de
“extrema-direita”.
Não
são os enfermeiros que estão a degradar o SNS, como não foram os
professores a degradar uma Escola Pública que, de excesso de oferta,
passou a não ter professores disponíveis, em virtude da campanha
desenvolvida para amesquinhar a profissão nos últimos 15 anos.
No
meio disto, o Presidente da República tomou partido, afirmando algo
sem sentido, ou seja, que as greves só podem ser financiadas por
fundos dos sindicatos que as convocam e que não poderão ser
apoiadas externamente, o que significa que a “sociedade civil”
não pode manifestar o seu apoio a uma dada causa. Ora... em tantos
anos de conflito, tirando o aluguer de autocarros e distribuição de
panfletos e bandeirinhas em manifestações, nunca assisti a qualquer
greve de professores que tenha tido qualquer apoio financeiro dos
respectivos sindicatos. Os “fundos de greve” são dinamizados
localmente, com sindicalizados ou não a contribuir por igual para
uma repartição equitativa, sem olhar a quotas pagas.
Sim, o
“sistema” não vai ter quaisquer contemplações com os
enfermeiros e a campanha irá tornar-se mais negra e suja porque se
percebe que, depois dos professores, é a vez de os enfermeiros serem
domesticados. Com aqueles, a colaboração dos sindicatos tem sido
preciosa, bastando ver como não é dado apoio a qualquer iniciativa
independente para recuperar o tempo de serviço no Parlamento, centro
da democracia representativa; com estes, o confronto entrou num nível
novo, com as máquinas comunicacionais do Governo e dos parceiros da
“geringonça” unidas numa mesma luta para que os enfermeiros
“percam o apoio da opinião pública”.
(...)
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