por Manuel
Loff
«Era
difícil de acreditar que esta legislatura, que começou de forma tão
surpreendente e esperançosa, pudesse acabar assim, neste festival de
demagogia e manipulação! Estes últimos meses de governo PS antes
das eleições têm sido os que melhor demonstram como, no que diz
respeito ao tratamento autoritário e classista que o Estado tem com
quem trabalha e vive do seu salário, nada de verdadeiramente
relevante mudou com a chegada de Costa ao poder e o fim do governo da
direita com a troika –
de facto, desde o cavaquismo.
A forma como este governo PS tratou professores, enfermeiros e, agora, motoristas, revela um perigosíssimo crescendo de autoritarismo. Cada batalha sucessivamente vencida contra cada um destes grupos profissionais deu alas a que o Governo fosse perdendo cada vez mais pudor e, na batalha seguinte, usasse ainda mais recursos do Estado cuja operacionalização é típica dos estados de exceção e objetivamente incompatível com a democracia.
Se
não, vejamos. Em todos estes três casos, o Governo manipulou
informação, exagerou as consequências das greves, ocupou o espaço
noticioso para promover teorias da conspiração, e usou de uma
intolerável arrogância, criminalizando os grevistas (recordam-se o
que disse a ministra da Saúde?, ouviram o que os ministros do
Ambiente e do Trabalho disseram dos motoristas que não cumpriam os
serviços máximos?), transformando o exercício de direitos em
ameaça social. Em todos os casos, o Governo e o PS acusaram os
sindicalistas de “objetivos políticos” – os mesmíssimos que o
Governo teve em cada uma das respostas aos movimentos grevistas.
Em
todos os casos, o Governo (e os media que o acompanharam na histeria)
atiraram-se à garganta de Mário Nogueira, da bastonária da Ordem
dos Enfermeiros, de Pardal Henriques – três personagens totalmente
diversas entre si, claro que sim, mas é tudo menos coincidência que
as três tenham sido tratadas como inimigos a abater! E, não, não é
verdade que aqui esteja em causa um “sindicalismo chantagista”,
como já se escreveu, de gente que “desrespeita a tradição
sindical portuguesa”.
Costa
e os seus ministros estão tão preocupados em preservar o
sindicalismo de classe da CGTP (tanto elogiaram a FECTRANS quanto
diabolizaram a FENPROF) quanto eu quero que gente assim governe com
maioria absoluta. A violação de direitos, liberdades e garantias
básicas do movimento sindical e dos trabalhadores configura aquilo
que, neste jornal, Ana Sá Lopes tão bem designou como “um
thatcherismo de fachada socialista”,
e é indigno não apenas de um governo que se diz “socialista”,
mas pura e simplesmente de qualquer democrata.
No
campo da separação de poderes, a Procuradoria deixou-se usar como
braço judicial do Governo, produzindo perigosas interpretações
(que agora só são isso, mas que poderão vir passar a ser letra de
lei) do direito e da legalidade das próprias greves, da maximização
de serviços mínimos, da intervenção do Estado, criando
precedentes gravíssimos para o futuro. Em todos os casos, o Governo
intimidou os contestários, dramatizou as consequências das greves
para mobilizar a hostilidade social contra elas, recorreu
descaradamente às forças de segurança e, neste último caso, às
próprias Forças Armadas (o EMGFA recebeu instruções para preparar
operação para atuar em “distúrbios civis, sabotagem, (…) ações
hostis por parte dos grevistas”?!).
Se em
dois dos casos, o Governo representava o Estado como empregador, no
caso dos motoristas comportou-se sem isenção alguma e, muito mais
grave, disponibilizou aos patrões toda a máquina coerciva do Estado
(polícias, militares, procuradores). Negociar assim, é fácil – e
assemelha-se muito a como, sob a ditadura salazarista, os patrões
negociavam…
Como
recorda o historiador Patrick Boucheron, “a melhor forma de
fazer-se obedecer” é “fazer temer, em vez de convencer – sem
fazer com que se compreenda nunca nada”. Foi assim mesmo que este
governo se comportou face a três dos movimentos grevistas mais
persistentes das últimas décadas: intimidou quem não desiste de
lutar, instilou medo e ansiedade no conjunto da sociedade. Ter
imposto esta lógica securitária a que, boquiabertos, assistimos nas
últimas semanas, num país sem violência política contra o Estado,
sem violência armada de tipo religioso e com dos mais baixos níveis
de violência societal, parece coisa de assessores políticos
sobreaquecidos que andam a aprender lições com Trump e Bolsonaro.
Ou com Macron, um dos modelos de Costa.
(Outra)
lição aprendida para outubro».
(Manuel
Loff, in Público, 22/08/2019)
Retirado Daqui
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