Trabalhadores
do l’Hospital
de Sant Pau,
Barcelona, manifestando-se contra a visita do primeiro-ministro Pedro
Sánchez
e defendendo a libertação dos dirigentes catalães presos
José
Pacheco Pereira
«La
libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los
hombres dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros
que encierran la tierra y el mar: por la libertad, así como por la
honra, se puede y debe aventurar la vida. (Cervantes, Don
Quijote)
Este é
um artigo indignado e como eu sou de raras indignações podem parar
de o ler aqui. Nestas alturas estou-me positivamente “marimbando”
– sem desculpa pelo plebeísmo porque preciso da sua força –
para as nossas tricas nacionais, e para o gigantesco espectáculo de
hipocrisia que é a União Europeia, capaz de se mobilizar pelas mais
minoritárias causas da moda, mas indiferente ao que se passa na
Catalunha.
Como
cá. São todos muito liberais, todos muito preocupados pelas
liberdades (económicas), todos muito tradicionais, alguns muito
revoltados com a repressão (na Venezuela ou em Cuba), e chega-se à
Catalunha e ficam todos muito indignados com a “violência” na
rua, todos muito legalistas, todos indiferentes a um processo
político persecutório, todos olhando para o lado para não verem as
multidões na rua, e acima de tudo para não verem as faces dessa
multidão. Para não verem que eles são iguais a nós, velhos,
mulheres, donas de casa, trabalhadores, jovens casais, moradores,
professores, funcionários, gente LGBT, gente conservadora, gente
cujos pais e avós conheceram a guerra civil e guardam a memória dos
fuzilamentos de dirigentes catalães ou dos movimentos estudantis e
operários que confrontaram o franquismo numa Catalunha mais
irridenta do que muitas partes de Espanha. Eles olham para a rua e
vêem os capuzes, e como o El País e a imprensa
portuguesa que o segue, estão muito preocupados com a Constituição
e com a lei, com revoltas, golpes de estado, revoluções, sedições,
separatismo, independentismo. O que não vêem ou admitem é que
possa haver uma vontade, uma determinação, uma razão pela
independência da maioria dos catalães.
Foto O
problema é que na rua catalã não estão fascistas de pata ao alto,
nem gente a marchar detrás de variantes da suástica, ou de runas
nórdicas, nem a gritar contra os refugiados, nem a atacar mesquitas
e sinagogas – está gente como nós. Mas o mesmo não se pode dizer
das setas da Falange, nem da bandeira espanhola transformada no
estandarte da “España, una, grande y libre” do
franquismo, que recrudesceram nos dias de hoje em resposta ao
independentismo catalão, numa causa que já mereceu em Espanha
muitos milhares de mortos.
Na
verdade, os nossos anti-catalães, parte do PS e quase toda a
direita, acabam por ser muito amigos de uma das mais sinistras
tradições do país ao nosso lado, o espanholismo de Castela,
historicamente muito agressivo, tradicional inimigo de Portugal, a
pátria que supostamente lhes enche o peito antes de chegarem a
Bruxelas, onde desincha. O espanholismo que encontrou os seus
melhores porta-vozes em partidos de extrema-direita como o Vox, que
Nuno Melo branqueou, ou num PP minado pela corrupção, ou na sua
versão modernizada o Ciudadanos, o partido que o CDS gostaria de ser
quando for grande. E em Espanha nesse partido que nem é socialista,
nem operário, mas que agora é muito espanhol e que aceitou ser
chantageado pelos herdeiros de Francisco Franco e que não teve a
coragem de evitar o julgamento político dos independentistas.
Podem
não ser favoráveis à independência catalã, não podem ser
indiferentes aos presos políticos e às suas sentenças punitivas. E
só por ironia é que se vê ficarem muito ofendidos com a comparação
entre Hong Kong e Barcelona, eles que não mexeram uma palha sobre
Hong Kong porque o seu anticomunismo pára na EDP e na REN, e não
têm muita autoridade para fazer essa distinção. O mesmo com a
“progressiva” e de “referência” comunicação social
espanhola cuja agressividade anti-catalã é repulsiva. E o mesmo
para a portuguesa.
E
repetem-se argumentos absurdos. O argumento contra o referendo então
é o de máxima hipocrisia. O referendo não valeu porque correu sem
qualquer controlo. Não é inteiramente verdade, mas é natural que
não tenha ocorrido em condições ideais com a polícia a roubar as
urnas, a ocupar lugares de votação e a bater nos que queriam votar.
Mas, se o problema foram as condições do referendo, então que se
faça outro em condições de liberdade e paz civil. Resposta: não,
não, nunca, jamais em tempo algum.
Eu sou
um grande admirador de Espanha, da sua cultura, das suas gentes. Li
o Quixote mais de que uma vez e não é por falta de
vontade que não o leio outra vez. Tudo o que de grande existe na
história da literatura e da arte está nesse livro, de Ulisses a
Leopold Bloom. O país que “deu” este livro merece tudo, menos
muita da sua política. Não é um país de história fácil, como se
viu na matança da guerra civil, de que o actual conflito é
demasiado herdeiro. Em política sempre foi dado a pouca tolerância
e a muito sangue, mas os seus grandes homens e mulheres nos últimos
200 anos foram-no exactamente por contrariarem isso. Unamuno é um
exemplo.
É
também por admiração e estima por Espanha que escrevo isto.»
Retirado de entreasbrumasdamemoria.blogspot.com
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