sábado, 23 de maio de 2020

Não é com palmas que os enfermeiros se governam


"Soldado da Saúde" - Moro
Há neste momento 3317 profissionais de saúde infectados e os enfermeiros são os mais afectados, ou seja, 1088. São os mais infectados e os mais afectados em termos salariais, como agora e mais uma vez ficou demonstrado: vários enfermeiros, entre os quais um casal a trabalhar no CHUC, viram o vencimento deste mês cortado a 100%, receberam somente as horas suplementares efectuadas há alguns meses, ou fortemente cortado, por terem ficado doentes pela Covid-19. As queixas que chegaram à Ordem dos Enfermeiros são mais que muitas, provenientes principalmente do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (está sempre na linha da frente!), do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, do Hospital de Bragança e do Centro Hospitalar Universitário do Porto.

Como bem refere a Ordem dos Enfermeiros, os enfermeiros não pagam as despesas pessoais ou familiares com “palmas”, precisam de dinheiro para viver. Ficar sem o vencimento ou vê-lo fortemente cortado é terrível, e ainda por cima um vencimento já de si minguado graças à actual carreira que nada beneficiou a classe em termos remuneratórios, nem de actualização e progressão; uma carreira que de “nova” só tem o nome, uma carreira para a estagnação, cortando qualquer perspectiva de futuro.

E se o futuro é a negação, o presente já se mostra bem negro, com os enfermeiros em contrato individual de trabalho (CIT), à semelhança dos outros trabalhadores da Saúde em mesma situação, a serem prejudicados pelo simples facto de não estarem em contrato de trabalho em funções públicas (CTFP), recebem cerca de menos 20%, com horário de 35 horas, e quando estão doentes recebem 70% e pagos pela Segurança Social: na enfermagem há profissionais de primeira, apesar de fraca, e de segunda. No caso e ao que parece, aquelas instituições ainda não tinham enviado os certificados de incapacidade temporária para o trabalho para a Segurança Social. Por aqui se avalia o desprezo com que as administrações, constituídas na sua maioria por comissários políticos do PS, tratam os trabalhadores.

A situação dos trabalhadores do Estado com CIT é de dupla exploração: no cômputo, ganham menos, possuem menos regalias, por exemplo, os enfermeiros que trabalham em serviços de psiquiatria ou de oncologia não beneficiam de mais 5 dias de férias por ano nem a redução de uma hora de trabalho semanal por cada três anos de serviços, como acontece com os colegas em CFTP. E, mais grave ainda, estão fora da carreira e sem verem os anos de serviço a contar para a progressão. Perante tão dramática situação, os sindicatos, com especial destaque para o SEP, que ainda anda com o governo do PS ao colo, nada ou pouco têm feito na prática, para além de pedinchar reuniões com a ministra, agora tão atarefada a dizer mentiras em doses diárias televisivas.

Como também refere a OE (embora possua alguma quota-parte de responsabilidade na situação criada pela actual carreira, porque foi feita à medida dos seus interesses e de acordo com os gostos dos chefes, a única categoria beneficiada, e agora pomposamente denominados “gestores”, alguns deles mal sabem redigir um texto em português inteligível), fácil se torna ao Governo assegurar estes vencimentos a 100%, pelo baixo significado em termos financeiros e, dizemos nós, seria uma prova, embora insignificante, de reconhecimento do esforço acrescido despendido pelos enfermeiros que estiveram, e ainda estão, na primeira linha de combate.

Não é despiciendo lembrar que, segundo o último inquérito realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública na Universidade Nova, “Saúde Ocupacional do Barómetro Covid-19”, 72% dos profissionais de Saúde dizem estar cansados, em níveis médios e altos de exaustão (Burnout), representando um aumento de 10% em relação à semana anterior; e desses, 58% aproximam-se de “uma situação de esgotamento” e 42% referem também que dormem menos de seis horas. Ora, nem será preciso dizer, como aponta o coordenador do estudo, que “não é possível um bom combate à Covid-19 sem bons, saudáveis e seguros combatentes”. E, acrescentamos nós, sem um correspondente digno vencimento, pago a tempo e a horas.

Ah!, a administração do CHUC, que sempre se pautou por pagar mal e porcamente aos enfermeiros, com dívida crónica de milhares de horas, que têm sido pagas a conta gotas (por imposição dos próprios enfermeiros e não por obra dos sindicatos) e nem sempre como trabalho suplementar/extraordinário, usando por vezes um critério dúplice, afirmou, e depois de ser questionada pela Ordem, que “procederá ao devido acerto das verbas em causa durante a próxima semana”. A ver vamos, como diz o cego.

Esta administração costuma mentir com todos os dentes, quando fala, porque muitas das vezes ou cala-se e faz de conta que nada é com ela ou faz “desaparecer” os requerimentos de algum funcionário a solicitar acerto de contas. E uma das mentiras mais recentes, fazendo coro com a ministra, é a de que são feitos testes de despiste a todos os funcionários que tiveram contacto directo com doentes de Covid-19, o que é uma rematada mentira; assim como afirmar que não há falta de material de protecção (EPI) e outro. E já agora também gostaríamos de saber o que é feito de donativos, nomeadamente alimentos e bebidas, que são entregues por particulares para os profissionais que estão na primeira linha da frente? A pergunta também é dirigida a alguns enfermeiros “gestores”.

A propósito, o Sindicato dos Enfermeiros - SE (o SEP mantém-se calado, tal como a administração do CHUC, parece haver alguma afinidade entre ambos) irá entregar uma reclamação contra o Estado português à Organização Internacional do Trabalho (OIT) “por violação de normas relativamente à actuação na pandemia causada pela Covid-19”. Concretamente, “estão em causa horários de trabalho (incumprimento da legislação específica da Carreira Especial de Enfermagem e dos IRCT - Instrumentos de Regulamentação Colectiva de Trabalho), o não pagamento de trabalho suplementar (após as 35 horas semanais) e o não pagamento do Regime de Prevenção e disponibilidade permanente previstos na legislação”.

Em vez de palmas e de mentiras, os enfermeiros, e todos os profissionais de saúde, precisam é que o Governo do senhor Costa lhes pague o que lhes é devido e reconheça na prática o seu extraordinário trabalho, e não continue a destruir o SNS (se não fosse o serviço público de saúde teria havido uma catástrofe) como pretende com o regresso das malfadadas Parcerias Público Privadas.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

A tempestade perfeita da Laboravid-20


"A transferência" - Vasco Gargalo (revista Sábado)
por António Garcia Pereira

«Aos poucos, e com a dificuldade imposta pela “nova ordem” do unanimismo e da pretensa “responsabilidade social” da imprensa, vamos compreendendo para que verdadeiramente serviu o decretamento do estado de emergência sob o pretexto do combate à pandemia da COVID-19.
Na verdade, serviu, acima e antes de tudo, para suspender direitos fundamentais dos cidadãos com um significado muito claro: o direito laboral à greve e o direito cívico e político de resistência contra qualquer agressão ilegítima, designadamente por parte das autoridades policiais.
Mas serviu também para impôr, a todos nós e por toda a parte, uma sinistra e dupla lógica. Por um lado, a lógica de que, à pala da emergência e sob o pretexto do combate sanitário, tudo é afinal  possível e tudo está justificado, por mais injusto e brutal que se mostre; por outro, a lógica do medo, tendente a, com uma informação em contínuo sobre os aterrorizadores números e imagens dos infectados, dos internados e sobretudo dos mortos, paralisar por completo os cidadãos, tornando-os amorfos, passivos e desencorajados de criticarem e combaterem aquilo que porventura ainda são capazes de achar que está errado.
E, claro, numa sequência lógica de tudo isto, a experimentação dos mecanismos de monitorização e controle, inclusive policial, de todos os movimentos sociais, com os políticos e sindicais à cabeça.
Por seu turno, a Comunicação Social, praticamente toda, e muito em particular o sector das televisões, transformou-se num misto de uma mórbida e asfixiante avalanche dita de informação e de contínua pregação, designadamente por toda uma corte de comentadores e ditos especialistas, do pensamento dominante.
Sob o extraordinário e salazarento argumento de que “enquanto os incêndios não se apagam não é hora de questionar os bombeiros”, foram sumariamente varridos dos écrans vários dos programas de investigação jornalística (aquela que poderia incomodar o Poder), bem como todo e qualquer ponto de vista crítico da actuação das autoridades e dirigentes políticos. É a justificação para a censura de tudo o que é incómodo para o Poder e para os poderes instituídos, já vista e revista antes do 25 de Abril, nomeadamente aquando das trágicas cheias de Novembro de 1967, de que a Comunicação Social não deve alarmar as pessoas (embora seja precisamente isso que se faz…) mas antes fazê-las tranquilizar-se e confiar. Tudo isto, enquanto, em nome da tal “responsabilidade social” dos jornalistas, se multiplicam diariamente as aparições televisivas, os discursos, as entrevistas e até as reportagens de rua para repetir até à exaustão o que governantes têm para nos enfiar pela cabeça dentro, sempre sem que uma única questão incómoda e directa lhes seja colocada. Governantes esses que, entretanto, e obviamente de forma desinteressada, decidiram dar 11,25 milhões de euros de “apoio” aos “órgãos de Comunicação Social” nacional, a título de pagamento antecipado de publicidade institucional. Quem disse que há almoços grátis?
Entretanto, as polícias aproveitam para treinar as operações STOP, as buscas e revistas e os interrogatórios completamente fora do quadro legal vigente, mas, claro, sempre em nome do combate à pandemia e do cumprimento das ordens dos “chefes”. Como se exercitaram em tão desproporcionadas quanto ridículas “operações musculadas” para dispersar quem parara na rua para ouvir uma exibição musical provinda de uma qualquer varanda vizinha. Obtiveram-se dados pessoais de cidadãos que não se sabe para onde foram e tratados e utilizados por quem e para quê. E os “falcões” das práticas securitárias não perderam tempo a defender medidas como a da obrigatoriedade de aplicações de telemóveis que permitem a localização em tempo real não apenas do cidadão portador daquele aparelho em concreto mas também de todos aqueles que com ele contactaram.
Em suma, tratou-se de treinar e “olear” tudo aquilo que, não se confessando desde já, se pretende fazer quando rebentar a “tempestade perfeita” daquilo que designo de LABORAVID-20, ou seja, da pandemia do desastre social e laboral que está a formar-se e começa a estar já à vista.
(...)

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Parasitas


"A PGR confirma a abertura de investigação ao caso da certificação e venda de três milhões de máscaras de proteção individual compradas pelo Ministério da Saúde à empresa Quilaban (de João Cordeiro) no âmbito de um contrato por ajuste direto, no valor de cerca de 8,5 milhões de euros, assinado em 07 de abril, durante o estado de emergência devido à pandemia." (da imprensa). E imagem no facebook

Ou como o Serviço Nacional de Saúde em Espanha, à semelhança do que se passa em Portugal, é parasitado pelo sector privado do negócio da saúde:
por Ángeles Maestro

«Efectivamente, a degradação do sistema de saúde tem uma longa história que não resultou só do descuido dos governos mas, muito pelo contrário, de decisões políticas activas e de longo alcance destinadas a enfraquecer a saúde pública e cuja importância foi sistematicamente ocultada.

Para poder entender esse processo é importante esclarecer alguns conceitos. A saúde pública e a saúde privada não são compartimentos estanques, e muito menos complementares. Na realidade estão tão intimamente relacionados que são um binómio inseparável. A relação entre ambas é muito semelhante à que se estabelece entre hospedeiro e parasita, certamente fundamental no estudo das doenças infecciosas.
O parasitismo, recordando a biologia, é um tipo de simbiose em que o parasita depende do hospedeiro e vive dele depauperando-o, sem chegar a matá-lo. O parasita obtém benefícios e o hospedeiro danos.

Ectoparasitas: as seguradoras privadas e os contratos
A evidente analogia para quem analise o assunto com critério independente, ou seja, que não tenha interesses vinculados ao capital privado, tornou-se um axioma, inclusivamente para o PSOE dos últimos anos do franquismo. Por exemplo, no seu programa político afirmava-se que era impossível desenvolver uma saúde pública de qualidade sem nacionalizar a indústria farmacêutica.

Poucos anos depois, em 1982, após a vitória do PSOE por maioria absoluta, essa afirmação ver-se-ia confirmada exactamente ao contrário. O dirigente mais destacado do PSOE em questões de saúde, Ciriaco de Vicente, um homem qualificado e com abordagens de esquerda, não foi nomeado ministro como era esperado. A poderosa indústria farmacêutica fez saber a Felipe González que não confiava em De Vicente. Em seu lugar foi nomeado Ministro da Saúde Ernest Lluch, um homem muito próximo da Farmaindustria, a associação empresarial da indústria farmacêutica estabelecida em Espanha.

Nessas condições, não surpreende que a Lei Geral de Saúde tenha eliminado artigos muito importantes que apareciam nos primeiros rascunhos, como a submissão do Medicamento ao planeamento geral do Sistema Nacional de Saúde ou a proibição expressa de acordos com entidades privadas.

Actualmente, quase 12% da despesa estatal em saúde pública vai para acordos, uma proporção em constante crescimento e muito maior em comunidades autónomas como Catalunha e Madrid.

O aumento exponencial da contratação de saúde pública com empresas privadas desenvolveu-se em sentido contrário do investimento e do desenvolvimento de serviços públicos. Com o argumento de reduzir as listas de espera foi acordada massivamente a realização de intervenções cirúrgicas de média ou baixa complexidade, muito rentáveis, em clínicas privadas que, em muitas ocasiões, estão muito abaixo dos padrões de qualidade exigíveis e às quais é permitido seleccionar pacientes. É evidente que para a saúde pública ficam todas as intervenções dispendiosas e as pessoas com patologias múltiplas ou de idade avançada.

As enormes listas de espera - especialmente a espera pelo diagnóstico - como expressão da degradação da saúde pública produziram outra consequência enormemente lucrativa: a escalada meteórica das apólices de seguro privadas. Os números de 2019 eram os mais elevados da história: 10 milhões de pessoas. O maior escândalo é o grande número de instituições públicas que pagam, com dinheiro público, apólices privadas aos seus membros e parentes. A aplicação desde 2016 de deduções fiscais significativas aplicáveis ​​a trabalhadores e empresas independentes e actualmente em vigor contribuiu significativamente para isso. É a raposa guardando as galinhas.

Voltando ao símile biológico, as empresas seguradoras privadas, cuja boa saúde depende da deterioração da saúde pública com o apoio inestimável - ou não - de decisões de várias cores políticas, seriam ectoparasitas (como os carrapatos ou os piolhos). Estes ectoparasitas desenvolvem-se no exterior do hospedeiro, a saúde pública, tal como as empresas que prestam serviços de saúde com as suas próprias instalações e recursos, embora já tenhamos visto a importante quinta coluna com que contam no interior no caso que nos ocupa.

E em saúde não se trata fundamentalmente de que o dinheiro público, saído dos nossos bolsos, vá enriquecer uns quantos, mas sim de que esse suculento negócio se faz à custa de vidas, de mortes prematuras e perfeitamente evitáveis. Nesse sentido, não se pode esquecer a dramática situação vivida em hospitais públicos obrigados a não atender pacientes com mais de 70 anos devido à falta de recursos, enquanto os serviços de saúde privados exibiam instalações de cuidados intensivos disponíveis… a preços de mercado. Nem o governo do estado, nem qualquer governo autónomo levantou um dedo para intervir em todos os recursos necessários, apesar de o primeiro Decreto de Estado de Alarme prever essa possibilidade.

Como bons parasitas, aproveitam da fraqueza do oponente. Em todos os meios de comunicação testemunhamos o escárnio de uma intensificação da publicidade de seguradoras (Sanitas, Adeslas, DKV, etc.) que oferecem atendimento a idosos doentes das classes sociais que podem arcar com essa despesa.

Endoparasitas: gestão privada com financiamento público.
A história dos endoparasitas, da penetração do capital privado na saúde pública é mais complexa. É uma guerra de trincheiras. É a consequência da crise geral do capitalismo que vê seus lucros caírem em sectores produtivos e se refugia no paraíso dourado dos serviços públicos.

O caminho da privatização começou nos anos 90, com a eufemisticamente denominada externalização de partes essenciais de um hospital como é o caso dos serviços de limpeza, lavandaria, cozinha ou segurança, e não cessou de se expandir a laboratórios, radio-diagnóstico, cuidadores, etc.

O tiro de partida para a entrada maciça de capital privado nos cuidados de saúde foi dado pela aprovação no Congresso dos Deputados da Lei 15/97 de novas formas de gestão, que contou com os votos do PP (governando em minoria), do PSOE, PNV, CiU e Coligação Canária. Pode imaginar-se maior consenso político? Pois ainda houve mais. No dia seguinte à votação, a Federação da Saúde de C.C.O.O. expressou a sua satisfação por um acordo tão amplo em torno de uma Lei fundamental para “modernizar” a saúde pública.

Pode o capital sonhar com algo melhor do que contar financiamento público, ter a clientela assegurada, poder impor condições de precariedade laboral, fazer depender os recursos oferecidos da obtenção de benefícios e da selecção de pacientes rentáveis?

A esse privilégio escandaloso, que supunha multiplicar por seis o investimento realizado durante o período de concessão, apresentaram-se as construtoras arruinadas após o estouro da bolha imobiliária, na grande maioria ligadas à rede Gurtel, multinacionais da saúde privada e fundos de capital de risco.

Os dados acumulados que apresento abaixo explicam o horror experimentado nos hospitais durante essa epidemia. Na saúde pública de Madrid tem havido desde 2008 uma diminuição brutal de pessoal, acelerada com a criação de onze novos hospitais de gestão privada e financiamento público. Perderam-se mais de 7.000 trabalhadores, incluindo 3.000 enfermeiros com diploma de bacharel ou licenciatura, e permanecem fechadas cerca de 3.000 camas.

A análise deste processo, complexo, mas que é indispensável conhecer, vai além dos objectivos deste artigo e já foi realizada, embora essa análise rigorosa não tenha transcendido para os grandes meios de comunicação. Este silêncio não é surpreendente se considerarmos que esta informação desmascara interesses políticos e empresariais que, por sua vez, contribuem decisivamente para o financiamento dessas mesmas empresas de comunicação.
(...)

terça-feira, 19 de maio de 2020

A nova ordem sanitária e o policiamento da vida colectiva


"Stop and Search" - Banksy
por Santana Castilho
«A declaração de calamidade não suspende, muito menos suprime, direitos laborais, sociais e políticos. Nem, nunca, estes direitos prejudicaram o combate à covid-19. Prejudicariam, isso sim, o curso da propagação da pandemia do medo, em que os principais responsáveis políticos se empenharam, arrastando, com pouca ponderação, 1,3 milhões de trabalhadores para o lay-off, 170 mil independentes para a penúria e 55 mil para a sopa dos pobres.
O ambiente em que vivemos desde 3 de Maio é manifestamente inconstitucional, porque pretende suspender direitos fundamentais por uma decisão unilateral do Governo. Com efeito, a situação de calamidade colhe o seu suporte legal numa lei ordinária da AR (Lei n.º 27/2006), que não permite limitar o exercício desses direitos senão de forma temporária determinada e apenas em zonas claramente definidas do território nacional (Art.º 21º, nº 1, b) da citada lei).
Mas uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação administrativa dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva. A retórica fascizante que a serve permitiu a António Costa armar-se em intérprete de um certo interesse superior, “diga a Constituição o que diga” e a um comandante da GNR recordar-nos o “dever de cada um ser o polícia de si próprio.” E, apesar de os cientistas do mainstream terem concluído que a quase totalidade das contaminações ocorreu em espaços fechados (habitações, lares e instituições de saúde), prepara-se agora o reforço das contínuas operações da PSP, da GNR e da Polícia Marítima, chamando “fuzileiros e artilheiros” (ministro do Ambiente dixit) para controlarem os perigosos areais. As medidas em estudo, refere a imprensa, admitem cercas, torniquetes, sensores, drones, vigilância privada, marcas na areia para espetar as sombrinhas e cordas para delimitar a separação entre banhistas. Por este caminho, ainda vamos ver um ajuste directo para amestrar carapaus, que vigiarão o distanciamento dentro de água.
À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus, coexistindo com ele por via da imunidade adquirida. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção, probabilisticamente baixo, e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.
A casa dos professores e a casa dos alunos cederam a sua natureza privada a uma certa lógica totalitária, que o fetichismo do ensino à distância impôs. O impropriamente chamado ensino à distância invadiu a vida privada e familiar dos docentes, misturando perigosamente vida profissional e vida pessoal. Sem resistência, inebriada por essa estranha união nacional contra a covid-19, uma parte significativa dos professores alistou-se em jornadas de trabalho sem limite e disponibilizou-se para trabalhar a todo o momento, respondendo a todas as solicitações. É prudente reflectir sobre o que está a acontecer e separar águas.
Uma coisa é uma metodologia sólida, coerente e tecnicamente complexa de ensino a distância (maioritariamente destinado a populações adultas e definitivamente vedado a algumas áreas temáticas), outra coisa é uma solução improvisada e precária (para entreter crianças e jovens afastados da escola). Não discernir sobre a diferença entre estes conceitos pode conduzir a entusiasmos para “normalizar”, no futuro, o que agora é meramente instrumental, pobre e casuístico.
Custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papeis sociais, que nenhuma máquina substitui.
In "Público" de 13.5.20

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Nem o vírus ataca toda a gente de igual modo nem estamos todos no mesmo barco



Banksy's Game Changer celebrates Britain's brave NHS health workers, who are at the forefront of the COVID-19 pandemic

Toda a imprensa de referência, desde que se iniciou o surto da doença Covid-19, não tem feito outra coisa senão dizer que “o coronavírus ataca todas as pessoas de igual modo” e que “estamos todos no mesmo barco”, razão pela qual devemos estar todos juntos em estreita “união nacional”; ora, os factos têm estado a demonstrar exactamente o contrário: nem toda a gente é atingida da mesma forma, como os meios ao dispor para lhe fazer frente à pandemia são diferentes conforme o estatuto social e económico de cada um.

É este sentido de desigualdade que os autores do Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública sublinham: «os concelhos com maiores taxas de desemprego e maiores desigualdades de rendimento são aqueles que têm maior número acumulado de casos de Covid-19 e a doença não se apresenta como uma ameaça igual para todos».

E mais: «uma em cada quatro das pessoas que ganham menos de 650 euros mensais diz ter perdido totalmente o rendimento, enquanto no conjunto dos que ganham mais 2500 euros isso aconteceu apenas em 6% dos casos»; ou seja, os cidadãos com mais rendimento perdem em média quatro vezes menos rendimento. Exactamente o oposto ao afirmado no último Boletim do Banco de Portugal, que dizia que «a pandemia tem um impacto maior nas famílias com rendimentos do trabalho mais elevados».

Em relação à saúde: «o fenómeno das desigualdades pode exacerbar as vulnerabilidades previamente existentes, ou seja, as consequências podem revelar-se mais negativas para pessoas em situação à partida mais precária», avisam peritos que assinam o estudo.

Afinal, a pandemia não trata todos por igual: «já se sabe que a saúde piora a cada degrau que se desce na hierarquia social», que «as condições sócio-económicas podem ter uma influência significativa no risco de infecção, mas o mesmo pode acontecer no diagnóstico, no tratamento e até na sobrevivência». E na sua prevenção, já que «uma em cada duas pessoas que ganham menos de 650 euros tem dificuldades em comprar máscaras».

A precariedade no trabalho, a remuneração baixa e a dificuldade de acesso a apoios sociais podem «impedir que as pessoas se resguardem mais nas suas habitações para se protegerem do vírus», e nem todos os trabalhadores podem estar em teletrabalho, sendo assim factores acrescidos de risco. Este também aumenta quando as condições de vida são piores, quando as «pessoas vivem em bairros onde existe uma maior densidade populacional e utilizam transportes públicos mais lotados».

Como são factores de risco trabalhar em fábricas sem condições e com patrões esclavagistas, a exemplo dos trabalhadores que andaram infectados durante mais de quinze dias em fábrica da Azambuja. Factos estes que pouco ou nada preocupam os que se indignaram com a manifestação na rua do 1º de Maio (diga-se de passagem, organizada timidamente pela CGTP), e que, à pala da indignação por algumas medidas do PS e da situação de abandono dos trabalhadores, tentam pescar nas águas turvas do populismo. E não são só o CDS e o Chega, opinadores encartados, exemplo Miguel de Sousa Tavares, não perdem oportunidade de atacar os trabalhadores e pedir mais cerceamento das liberdades e direitos do cidadão.

A intenção das nossas elites, tendo o governo do PS como agente executivo (tal como as grandes empresas), é, aproveitando a pandemia, a de impor medidas de mais austeridade e, se for necessário, aumentar a repressão sobre os trabalhadores (estamos bem lembrados da requisição civil dos enfermeiros de há um ano), não satisfazendo as suas mais que justas reivindicações, desde um salário digno a uma carreira profissional de futuro.

O desemprego e a precariedade aumentaram em pouco mais de mês e meio (tempo de estado de emergência): mais 75 mil pessoas nos centros de emprego em Abril, comparado com igual mês de 2019, e redução dos salários de um milhão e trezentos mil trabalhadores em regime de lay-off. Entretanto as organizações patronais, com destaque para a CIP, exigem ao Governo 20 mil milhões de euros em fundo perdido e em linhas de crédito pelas quais o Estado deverá ser o fiador, e mais recentemente o prolongamento do regime de lay-off por tempo indeterminado. Se isso acontecer, será dívida pública a nível astronómico (agora, já é impagável!) e menos investimento no SNS e em outras áreas sociais. Na prática: os ricos ficam mais ricos e os trabalhadores ficam duplamente mais pobres.

Não, não somos todos iguais nem estamos no mesmo barco, como alguém já disse: «Estamos no mesmo mar, uns em iates de luxo, nós outros na água a tentar nadar!»

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Os negócios da pandemia



O Governo PS está agora a ser bombardeado com acusações de corrupção e tráfico de influências no que respeita à aquisição por ajuste directo dos materiais usados no combate à pandemia do coronavírus, desde máscaras a testes e outro equipamento, com a justificação de “urgência”, de não haver tempo para lançar concursos, sempre morosas pela complexa burocracia. O caso que estará a dar mais que falar é o ajuste directo a empresa do ex-candidato socialista João Cordeiro à Câmara de Cascais (e ex-presidente da Associação Nacional de Farmácias, cargo que manteve durante 32 anos) de uma encomenda no valor de nove milhões e trinta mil euros em máscaras e cujo prazo de entrega é de 268 dias, com o argumento da dita “urgência imperiosa”. Esta empresa, QUILABAN, deve dizer-se, já fez 46 contratos com o Estado no montante de muitos milhões de euros desde o início do estado de emergência.
A ministra da Saúde, confrontada com o escândalo por alguns jornalistas, respondeu que os contratos iriam ser tornados públicos, dando a entender que no caso referente o prazo será para entrega faseada ao longo do tempo e, no geral, a lei foi respeitada. Com transparência ou falta dela, a verdade é que o Governo, à pala da Covid-19, fez contratos por ajuste directo de mais de 100 milhões de euros, segundo a imprensa, e que poderão ir até aos 300 milhões, a pouco mais de meia-dúzia de empresas, o que poderá levar-nos a pensar de quanto serão as comissões e em que empresas os actuais governantes com responsabilidade pelos ajustes directos irão ter emprego depois de saírem do Governo?
Mas não são só os “negócios da China”, mas ao contrário porque estes ficarão bem caros ao erário público e não são nenhumas pechinchas, que têm molestado a credibilidade do Governo e a honorabilidade de alguns dos seus membros, também tem incomodado a contratação dos serviços ao sector privado para reduzir as listas de espera, terrivelmente aumentadas pelo dedicação quase exclusiva do SNS ao combate à doença Covid-19, com a ministra a anunciar o aumento de cheques para cirurgias, ou a continuação de não se querer contratar o número necessário de profissionais para que o SNS não colapse. Um colapso certo e sabido a prazo, sem a agravante de ter de atender milhares de doentes infectados pelo novo coronavírus, cujo número irá aumentar até ao fim do ano.
Quanto à questão da acusação da Ordem dos Médicos de que estes profissionais são em número insuficiente parece difícil de refutar: “Sem descanso, médicos consideram contratação em tempo de pandemia insuficiente”. E a razão é óbvia: há médicos sem conseguir tirar folgas ou férias porque foram contratados só mais cem especialistas, entre os 2300 profissionais de saúde contratados durante o período da pandemia. Daí a necessidade de reforçar o número de médicos, atendendo à necessidade acrescida de que agora haverá mais cirurgias, consultas e exames complementares de diagnóstico a realizar.
Se os médicos são insuficientes, o que dizer de enfermeiros e de outros técnicos de saúde? Dos 2300 profissionais já referidos, 750 são enfermeiros e 1100 são assistentes operacionais (mais 150 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e 150 assistentes técnicos), números insuficientes para colmatar as faltas em tempo normal de actividade do SNS, tal foi a razia feita pelos governos do PSD e também do PS, pelas suas políticas economicistas, respeitadoras das imposições da troika e mais tarde de Bruxelas, quanto mais em tempo de emergência sanitária! Não esquecer que os assistentes operacionais são profissionais tão imprescindíveis como os restantes e que são os mais miseravelmente pagos, 650 euros!
Os sindicatos e Ordem dos Enfermeiros falam na necessidade de contratação de mais enfermeiros, alertando que muitos enfermeiros estão inclusivamente a abandonar a profissão devido às condições miseráveis oferecidas pelo Governo, desde salários a 6,42 euros/hora à ausência de uma carreira digna e abrangente a todos os enfermeiros. A continuação dos CIT's é completamente inadmissível e uma vergonha para os sindicatos que continuam a pactuar. E esta realidade torna-se ainda mais confrangedora considerando que a maioria dos enfermeiros está neste momento completamente extenuada, algo desmotivada e à espera que o Governo reconheça de facto a importância da sua função.
O estado de emergência teve como objectivo não proteger a saúde pública, como anunciaram, mas permitir, através da suspensão das liberdades, direitos e garantias dos cidadãos, alterar os planos de férias, deslocar de serviço os trabalhadores, suspendê-los do trabalho, para além da consequência inevitável, apesar de dizerem o contrário, do aumento do desemprego e da precariedade. Se a intenção era defender a saúde dos portugueses, então não se tinha deixado chegar o SNS ao ponto de descalabro a que chegou, e não se permitia os negócios que agora têm crescido ao abrigo do combate do à pandemia, e tinha-se destinado esses muitos milhões à contratação de profissionais de saúde e de material a tempo e a horas, até para evitar as consequências nefastas da especulação de preços, e activando e reconvertendo as unidades fabris que ainda se encontram nas mãos do Estado, como seja o Laboratório Militar e as Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército.
Só que a política do Governo é a de continuar a retirar rendimentos aos trabalhadores, pelos meios mais díspares, para os entregar aos grandes empresários e grupos económicos, uma repetição do que se fez em relação aos bancos, em 2008-2014, mas agora estendido a um maior número de empresas que quando têm lucros, mentem-nos aos bolsos, e quando há prejuízos, endossam-nos ao povo contribuinte. É o socialismo ao contrário, o velho timbre do Partido Socialista e de que tanto gosta, por exemplo, o SEP e outros que têm andado com os governos PS ao colo.