«Uma
senhora entra com o marido num centro de saúde com uma queimadura de
segundo grau na mão. Aguarda, pacientemente, a sua vez até a
chamarem. O diagnóstico é simples, o tratamento também. Basta
aplicar uma pomada, proteger a mão com umas ligaduras, impedir a
todo o custo que a zona da queimadura apanhe água e aguardar a
cicatrização. Problema? O centro de saúde não tem a pomada
necessária para fazer o curativo. Acabou. E, por qualquer motivo,
não foi reposta. Se quiser ser tratada, esta senhora tem que sair do
centro de saúde, ir a uma farmácia, pagar quatro euros para comprar
a pomada, regressar ao centro de saúde e fazer o curativo. Foi essa
a sugestão que lhe fizeram e foi isso que esta senhora fez.
Incrédula, mas foi isso que fez.
Por
mais que gostasse de ter inventado esta história de terceiro mundo,
ela aconteceu mesmo. E não foi há 10 anos, foi em 2019, esta
semana, a mesma em que, no Parlamento, António Costa jurava a pés
juntos que estava virada a página da austeridade e que vinha aí a
prosperidade. Não vem. Nem a prosperidade está aí à espreita, nem
a austeridade em Portugal é uma realidade ultrapassada. E a saúde
é, provavelmente, o exemplo mais gritante.
Um
país próspero não deixa acabar os medicamentos nos centros de
saúde e nos hospitais, nem obriga os seus utentes, aqueles que
descontaram durante anos para o Estado, a pagarem mais por um
tratamento do que aquilo que têm para viver.
Um
país próspero não tem hospitais públicos indignos, sem o mínimo
de condições, com doentes em agonia amontoados em corredores. Não
deixa os seus cidadãos meses à espera de uma consulta ou, pior
ainda, de uma cirurgia, sujeitos a morrerem enquanto esperam.
Um
país próspero não permite que fechem as urgências pediátricas de
um hospital por falta de profissionais de saúde. Não trata crianças
com doenças oncológicas em contentores. Nem deixa pessoas morrerem
por falta de assistência médica urgente.
Um
país próspero não divide a sociedade entre os "privilegiados"
e os "outros." Entre os que têm um seguro de saúde e
podem ser tratados em hospitais privados, com todo o conforto - que
qualquer cidadão merece - e os que, por falta de condição
financeira ou simplesmente porque não são funcionários públicos,
ficam entregues à sua própria sorte.
Um
país próspero não permite que uma consulta de especialidade no
privado, com seguro de saúde, seja mais barata que uma urgência no
Serviço Nacional de Saúde.
Um
país próspero não trata os seus profissionais de saúde de uma
forma humilhante. Não lhes paga um salário miserável, não lhes dá
condições degradantes para trabalharem e não os obriga a fugirem
para o setor privado ou, pior ainda, a emigrarem.
Acenar
com a prosperidade num país onde tudo isto acontece é, no mínimo,
insultuoso. Porque falta fazer o básico. Falta garantir aos cidadãos
que trabalham e pagam impostos aquilo que a constituição lhes
promete, mas que o Estado tem sido incapaz de cumprir: um Serviço
Nacional de Saúde universal, de qualidade e gratuito.
Não
adianta sermos ingénuos ou facciosos. Se na saúde - como em tantas
outras áreas - estamos longe da tão desejada prosperidade, culpar
apenas o atual governo é injusto. São décadas de más escolhas
políticas, de discussões estéreis, pouco práticas, de falta de
visão e, muitas vezes, de falta de respeito pelo dinheiro dos
contribuintes. São décadas de má gestão, com responsabilidades
que têm que ser partilhadas por todos os partidos que tiveram
funções governativas.
Aqui
chegados, talvez valha a pena recordar Otto Von Bismarck, o chanceler
"de ferro" alemão, que disse que "a política é a
arte do possível." É, de facto. E se olharmos para este
programa de governo numa perspetiva exclusivamente de sobrevivência
política, talvez António Costa esteja a fazer o que tem de ser
feito: responder ao PAN, ao PCP, ao Bloco de Esquerda, ainda dar uma
perninha às reivindicações do Livre, sem nunca largar as
obrigações impostas por Bruxelas.
Mas a
política é também a arte das escolhas. Das opções que se fazem.
E enquanto essas opções não passarem por uma estratégia económica
que torne Portugal um país mais competitivo, com níveis de
crescimento económico que tornem sustentável o papel do Estado,
ninguém se devia atrever a falar num país próximo da prosperidade.
Enquanto o dinheiro dos impostos não servir para termos um Serviço
Nacional de Saúde digno desse nome, a austeridade não acabou.»
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