Ricardo
Paes Mamede
«Todos
os dias há notícias sobre problemas nos serviços públicos de
saúde em Portugal. São tão insistentes que ficamos sem saber se o
Serviço Nacional de Saúde (SNS) está à beira do colapso ou se há
quem queira fazê-lo pior do que está. O relatório "Health at
a Glance 2019", publicado há dias pela OCDE, dá-nos uma ideia
algo diferente. Permite-nos ver o bom e o menos bom do sistema no seu
conjunto. Mostra-nos também o que há de assustador nas perspectivas
de evolução do SNS.
(...)
Apesar
do progresso, há dados que evidenciam falhas importantes no sistema,
a começar pela desigualdade no acesso à saúde em função dos
rendimentos. Portugal apresenta das maiores diferenças entre ricos e
pobres na probabilidade de consultar um médico em caso de
necessidade. Cerca de metade (47%) das pessoas com menores
rendimentos adiam consultas necessárias por razões económicas - é
o segundo valor mais alto da OCDE, quase o dobro da média (o que não
acontece entre a população com mais recursos). No caso da ida ao
dentista, Portugal é o segundo país onde a diferença entre ricos e
pobres é maior.
A
falta de resposta do SNS não acontece apenas no caso da medicina
dentária, mas na generalidade das consultas (seja de clínica geral
ou de especialidade) e nos tratamentos de reabilitação. O Estado
português assegura 85% do financiamento dos cuidados hospitalares,
mas apenas 66% dos cuidados ambulatórios (na OCDE, os valores médios
correspondentes são 88% e 77%).
Ou
seja, o acesso a consultas médicas é uma das áreas em que o SNS
mais falha, penalizando principalmente as camadas mais pobres da
população. Isto traduz-se em dificuldades sérias para muitas
famílias: Portugal é um dos países com maior incidência de
despesas catastróficas em saúde, definidas como pagamentos que
excedem os níveis de despesa expectável por família.
Igualmente
grave é a incapacidade do SNS para responder adequadamente à
evolução demográfica. Portugal apresentava em 2017 uma das maiores
percentagens de população acima de 65 anos (21,3%) e acima de 80
anos (6,2%). De acordo com as previsões, em 2050 aqueles valores
aumentarão para 35% e 13,4%, respectivamente. Esta evolução
demográfica coloca desafios a que o SNS não tem dado resposta.
A
esperança de vida dos portugueses após os 65 anos é das mais
elevadas (22,1 para as mulheres e 18,3 para os homens). No entanto,
Portugal é dos países onde é menor a parte de vida saudável na
terceira idade. Cerca de ¾ das pessoas acima dos 65 anos sofrem de
duas ou mais doenças crónicas (contra apenas 31,4% na média da
OCDE). Apenas 14,3% dos indivíduos desta faixa etária classificam a
sua própria saúde como boa ou muito boa (três vezes menos do que
na média da OCDE).
Apesar
da estrutura demográfica e dos problemas de saúde dos mais velhos,
os recursos destinados a este segmento da população são modestos.
Por exemplo, as despesas públicas com cuidados continuados são de
apenas 0,5% do PIB em Portugal, uma das mais baixas taxas da OCDE
(cuja média é 1,7%). Isto reflecte-se não apenas na qualidade de
vida dos idosos, mas também numa pressão crescente sobre os
hospitais e centros de saúde para acudir a situações que, na
verdade, estão para lá do âmbito da sua actuação.
Há,
com certeza, casos de má gestão ou incapacidade de organização
dos serviços públicos de saúde em Portugal. Mas a principal
conclusão que se retira dos dados da OCDE é outra: o SNS está
subfinanciado. As necessidades acrescidas que decorrem da estrutura
demográfica e das enormes desigualdades sociais em Portugal
aconselhariam um esforço maior do que a média no financiamento da
saúde. Não é isso que acontece, pelo contrário. A despesa pública
em saúde por habitante em Portugal (em paridades de poder de compra)
é menos de dois terços da que se verifica na média da OCDE.
Tirando o caso da Grécia, Portugal é o único país da UE cujas
despesas públicas em saúde em 2017 eram inferiores aos valores de
2010. Foi também um dos poucos países onde os salários dos médicos
caíram neste período.
O
subinvestimento no SNS não se reflecte apenas na saúde dos cidadãos
no imediato. A incapacidade de resposta e a degradação das
condições de trabalho dos profissionais abrem espaço à expansão
da oferta privada. O sistema público vai-se tornando um pobre
serviço para pobres, enquanto os privados oferecem serviços em
função da capacidade de pagamento. Se nada de relevante for feito
para inverter a situação, acabaremos todos a pagar mais por um
sistema cujos resultados serão medíocres - como o relatório da
OCDE mostra para o caso dos EUA. O interesse objectivo que o poderoso
lobby privado da saúde tem
na degradação do SNS é o lado mais assustador desta história.
Resta saber se quem defende outro destino para a saúde em Portugal -
dentro e fora do governo - vai ter força para resistir à pressão
dos interesses.»
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