sexta-feira, 8 de março de 2019

Carta aberta a António Costa


Santana Castilho*
«Senhor Primeiro-ministro:

Uma carta aberta é um recurso retórico. Uso-o para lhe dizer o que a verdade reclama. Errará se tomar esta carta por mais uma reivindicação de grémio. Não invoco qualquer argumento de autoridade por pertencer a uma classe a quem deve parte do que sabe. Escrevo-a do meu posto de observação da vida angustiada de milhares de professores, que o Senhor despreza. Com efeito, cada vez que o Senhor afirma que os professores são intransigentes, está antes a falar de si e do seu governo. Como pequeno manipulador que é, falta-lhe a humildade e a honestidade para reconhecer que falhou no relacionamento com os professores e recorre a uma narrativa que não resiste à confrontação com os factos. Façamo-la.

(...)
O Senhor mente quando fala de 600 milhões. Nunca apresentou as suas contas. Os professores deixaram as contas certas na AR. Nem de metade se pode falar!

O problema não está, nem nunca esteve, no dinheiro. Está, como sempre esteve, nas mentiras e nas escolhas políticas do seu governo. Está na manipulação dos números, no abocanhar oculto de receitas injustas e nas cativações. Está nas diferenças entre os orçamentos de fachada que a “geringonça” aprovou e os orçamentos de austeridade desumana que Ronaldo Centeno executou. Numa palavra, causa-me náusea ouvi-lo dizer que não tem dinheiro para pagar o que deve aos professores, depois de ter aprovado cinco mil milhões para sustentar bancos parasitas. 

O tom que usou para falar de enfermeiros e professores, que não se portam como eunucos de outros tempos, foi demasiado vulgar e não serviu a cultura cívica minimamente decente que se deseja para o país. Não se sentiu incomodado por uma ministra do seu Governo homologar um parecer onde se diz que uma greve que não afecte mais os trabalhadores do que o patrão é ilegal? Ficou tranquilo quando o seu Governo protegeu os fura-greves dos estivadores de Setúbal? Não veria a democracia em risco se pertencessem a outro governo, que não o seu, estas acometidas contra a liberdade sindical? Numa palavra, a sua arrogância tornou-se insuportável.

Não posso concluir sem uma referência ao conforto que o Presidente da República lhe veio dar, quando perguntou: “é preferível zero ou alguma recuperação?” É estranho que um professor, para mais do cimo da mais alta cátedra da nação, pareça sugerir a outros professores que troquem a ética pela pragmática. Como se ser justo fosse equivalente a ser oportunista ou ser esperto. Fora eu o interpelado, que no caso felizmente não sou, e respondia-lhe: zero! Por dignidade mínima. Porque se a lei pudesse ser substituída pela pragmática, aqui e além, a vida moral virava simples hipocrisia. Porque o modelo de actuação de um professor não é o modelo de actuação do homo economicus, que facilmente troca a fiabilidade do seu carácter por qualquer ganho imediato. Para não aviltar quantos lutam pela justiça e são solidários com os colegas humilhados.

Termino assumindo que, para além do que lhe acabo de dizer, tenho uma posição ideológica clara: sou visceralmente contra as pedagogias propaladas por meninos crescidos, glosando como se fossem coisa nova temas como flexibilidade, autonomia e inclusão, que colocaram no fim da lista os conhecimentos essenciais à compreensão do nosso mundo e à formação de cidadãos inteiros. 

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