domingo, 12 de janeiro de 2014

Promiscuidades e destruição do SNS



Provocou escândalo e indignação a notícia do "Diário de Notícias" a respeito de uma doente, de 60 anos, que descobriu que tinha um cancro em estado grave depois de ter esperado dois anos por uma colonoscopia, no hospital Amadora-Sintra, e que deveria ter sido feita logo após o rastreio. Como se esperava, a administração do hospital veio de imediato manifestar “grande preocupação”, prometeu inquérito, como também é habitual neste tipo de situação, e cujos resultados são conhecidos à partida, nenhuns.

As reacções pelos responsáveis políticos e administrativos foram também imediatas, já que se trata de um assunto sensível à opinião pública e há que preservar, no mínimo, a imagem: o presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo veio perorar sobre o acontecimento e garantir que os hospitais públicos vão realizar mais cinco mil colonoscopias em 2014 do que em 2013 (“explicou” que foram realizadas 70 mil colonoscopias em Lisboa, 27 mil das quais em hospitais do SNS); e o ministro da Saúde considerou a “colonoscopia uma situação preocupante” e comprometeu-se a resolver o problema da demora das marcações, coisa que já tinha feito há algum tempo; o PCP pediu a comparência do ministro no Parlamento, obviamente, para se explicar; a inefável Ordem dos Médicos, pela boca do bastonário, responsabiliza “os cortes na saúde” pela situação.

Como é, também, de esperar, quando passar a onda de espuma da indignação politicamente correcta, ninguém falará mais no caso e tudo ficará igual ao que estava. E porquê? Porque outros valores mais altos se levantam. E quais são? Os interesses da medicina privada e das clínicas de imagiologia, onde, numa mais que conhecida e abjecta promiscuidade, médicos, enfermeiros e técnicos trabalham simultaneamente no público e privado, alguns dos quais também proprietários, havendo compadrios facilitadores do negócio a nível das administrações hospitalares. Quando o hospital Amadora-Sintra marcou a colonoscopia à doente em causa para daí a um ano, esperava que a doente fosse a correr marcar no privado e pagar do seu bolso não os 50 euros mais 14 de taxa moderadora, mas cerca de 130 a 140 euros, que é quanto se cobra no privado, podendo o utente ser reembolsado uma parte passado algum tempo do seu subsistema de saúde. Mas não foi isso que aconteceu, porque muitos portugueses nem dinheiro têm para comer.

A situação das colonoscopias é muito semelhante à das intervenções cirúrgicas, recentemente denunciada por um dos canais de televisão, um negócio promiscuo, onde se delapida os dinheiros públicos por esquemas de compadrios e de interesses pouco claros. As intervenções cirúrgicas não são efectuados nos hospitais do SNS pelos médicos que aí deviam trabalhar e dar o rendimento que justificasse o salário que, mesmo sem horas extraordinários, não é assim tão baixo comparado com o salário médio de um trabalhador, para serem adjudicadas a clínicas privadas, por concursos viciados ou sem concurso algum, onde vão ser realizadas pelos mesmos médicos, que as deveriam ter feito e não as fizeram no público, que assim ganham a dobrar, mais os ganhos das clínicas, ficando ao estado três ou quatro vezes mais caras. O estado (que são os governos PS e PSD) é o único patrão que incentiva e protege os empregados que lhe fazem concorrência desleal, razão que é mais que sobeja no sector privado para despedimento com justa causa. É esta promiscuidade entre público e privado, acarinhada, ao cabo e ao resto, pelo governo, que é responsável pelas longas listas de espera para exames complementares de diagnóstico e intervenções cirúrgicas, e pela degradação dos serviços prestados pelo SNS em geral, servindo simultânea e paradoxalmente como argumentação para a defesa dos negócios privados da saúde (não é por acaso que só cerca de um terço das colonoscopias são realizadas pelo SNS). Foi esta promiscuidade entre público e privado que teve o seu início em 1988, com a lei de gestão hospitalar de governo de Cavaco Silva, e atingiu o auge em governos do PS que lhe deram continuidade, que conduziu e até justificou a política de privatização e das PPP’s na Saúde; coisa simples, que o senhor bastonário dos médicos se esqueceu de referir aquando da sua intervenção televisiva na tentativa de explicar o “caso da colonoscopia”, porque por detrás do economicismo encontra-se sempre a questão política e ideológica.

Mas enquanto os médicos se desdobram por três ou quatro locais de trabalho, possuindo o dom da ubiquidade, os enfermeiros, tentando imitar os médicos, ganham, muitos deles, uma miséria nessas clínicas de exploração da carteira do cidadão, coisa que é mais bem cuidada do que propriamente a saúde de quem lá ocorre. Na Sanfil, em Coimbra, cuja fama aumentou substancialmente após a reportagem televisiva, os enfermeiros, a maior parte recém-licenciados, ganham pouco mais de 3 euros à hora, ou seja, pouco mais de metade do salário de uma empregada de limpeza, sem que os sindicatos da enfermagem alguma vez se tivessem preocupado grandemente com o problema. Para além do salário de miséria, são obrigados a realizar tarefas que não são do seu âmbito, como tarefas administrativas, limpeza e outras. E mais ainda, muitas vezes não têm hora certa de saída, e quem não estiver satisfeito pode ir embora porque há uma fila enorme de enfermeiros desempregados à porta a querer trabalho; o assédio moral é constante, esta é uma denúncia feita frequentemente por quem lá trabalha, de enfermeiros a auxiliares ou a médicos mais novos. E mais ainda, a administração da Sanfil proibia, até há pouco tempo, que os enfermeiros usassem o elevador para prestar cuidados de um andar para o outro porque ficava mais caro (no turno da noite só há um enfermeiro de serviço para os quatro andares). A isto se chama um extremamente lucrativo e rentável negócio, que multiplica por muito os lucros em curto período de tempo, pudera!, porque assente no compadrio e favorecimento (a responsável da gestão do SIGIC de Coimbra foi “por coincidência” trabalhar para a Sanfil, não foi “por coincidência” que o presidente da ARSC não quis dar a cara, e qual o papel da administração do CHUC em todo este negócio?) e… em trabalho escravo.

Em Portugal morrem anualmente mais de 3800 pessoas devido ao cancro do intestino; esta mortalidade poderia ser reduzida em 16%, ou mais, com a introdução de um programa de rastreio feito no SNS, ou seja, se se privilegiasse a prevenção primária e não a saúde curativa, só que esta é que dá dinheiro aos negociantes da saúde (ou da doença) e ao próprio estado, que tem actuado de molde a introduzir no sector público os mesmo métodos e filosofia de gestão. Educar para a saúde e prevenir a doença é considerado por estes governos uma despesa inútil, não querendo saber que a prazo esta política é a mais frutuosa, porque um povo saudável é sempre mais feliz e até mais produtivo; o reverso é que seria uma chatice porque deixaria de haver doentes, e lá se iam os negócios. Mais uma vez se prova que os negócios privados são feitos à custa dos dinheiros públicos e na base da corrupção de quem exerce o poder político, ou seja, dos partidos do arco do poder. Maior notoriedade quando se trata das funções sociais prestadas pelo estado, caindo por terra o slogan “o privado é melhor gestor que o estado”. Entretanto, reina a impunidade.

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