segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Os cadáveres adiados


Artigo da jornalista São José Almeida, saído no "Público", 20/02/2010, onde esta reconhece que o modelo económico e até o projecto de sociedade assumidos pelas nossas elites para implementar no Portugal democrático, pós-25 de Abril, faliu. São cadáveres adiados os modelos de saúde como fonte de lucro, um mero negócio, assim como a reforma da Segurança Social ou a educação entregue às regras do mercado. A “iniciativa privada” foi à falência ainda quase antes de ter entrado em vigor:
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Há uns dias, em conversa com uma personalidade de topo da vida política portuguesa, esta, visivelmente preocupada e indignada, questionava-se sobre qual a razão por que ninguém assume publicamente a verdade e diz, preto no branco, que "a iniciativa privada falhou"? Esta afirmação parece uma heresia em relação ao discurso político vulgarmente ouvido em Portugal, mas era importante que a classe política e as aristocracias do poder político e económico começassem a assumir que faliu o projecto de sociedade, o modelo económico que foi ensaiado e construído no pós-25 de Abril, sobretudo, desde o cavaquismo. Um projecto político subsidiário das teses neoliberais, que campearam nas democracias ocidentais – e não só nas democracias – e que se entretiveram a desconstruir muitas das estruturas do Estado Social, entregando à criatividade da "iniciativa privada" e à sacrossanta liberdade de mercado as rédeas da condução do desenvolvimento económico.

A verdade é que as empresas lucraram, os lucros ajudaram a enriquecer uns quantos aristocratas do sistema e a criar uma sociedade que continua a ser a mais desigual da Europa no que toca à redistribuição da riqueza e do rendimento. E o parco, magro e jovem Estado Social que existia em Portugal foi debilitado e ficando cada vez mais anémico. O Serviço Nacional de Saúde foi emagrecido e muitos dos seus serviços são hoje garantidos pelo sector privado, transformado o direito à saúde no negócio da saúde. Os médicos foram atirados para fora dos hospitais públicos. Os serviços foram fechados. As listas de espera foram crescendo. Os grandes grupos económicos foram autorizados a entrar no negócio da saúde, abrindo novos hospitais, que acabam por se substituir ao Estado. E a quem este, através do Orçamento, paga os serviços que outrora eram prestados pelo SNS. Mais, perante o colapso do SNS, os cidadãos são estimulados a fazerem seguros de saúde, que alimentam o negócio da saúde privada, mas que duram só até aos 65 anos, enquanto, teoricamente, o negócio é lucrativo para as seguradoras.

O direito ao lazer e a ver recompensada uma vida de trabalho, o direito a usufruir na velhice de uma redistribuição da riqueza que se ajudou a construir, foi alterado e na prática diminuído, com uma reforma do sistema de Segurança Social, que prolonga o tempo de trabalho e diminui os beneficios dos reformados em nome de critérios que privilegiam o beneficio das empresas e do seu lucro, em detrimento do bem-estar das pessoas.
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in Público, 20/02/2010

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